Os portuenses devem ser ouvidos sobre a evolução da sua cidade — antes, e não
depois, de terem sido decididas, assumidas ou consumadas as intervenções
significativas.
Por essa razão, Campo Aberto – Associação de Defesa do Ambiente subscreveu e apoiou
desde o início os objectivos do Movimento pelo Parque da Cidade, que está a
ponto de tornar-se um dos mais importantes sobressaltos cívicos na vida
portuense recente em matéria de ordenamento urbano.
A importância do que está em causa pode entender-se melhor à luz deste facto
simples: enquanto os espaços verdes públicos no Porto não chegam ainda aos dez
metros quadrados por habitante, a média europeia situa-se muito acima daquele
valor. Veja-se: 567 metros quadrados por habitante em Graz (Áustria) e 125 em
Viena; 29 em Bruxelas, 38 em Antuérpia, 56 em Glasgow, 34 em Atenas; na área
metropolitana de Barcelona, 89 metros quadrados por habitante; média europeia
das 58 maiores cidades (com excepção de Paris e Londres), 42 metros quadrados,
mais do quádruplo do valor estimado para o Porto! (cf. Urban Audit: Assessing
the Quality of Life of Europe’s Cities; estudo da Comissão Europeia efectuado
em 1998-1999; https://inforegio.cec.eu.int/urban/audit/).
Como poderá então tolerar-se qualquer diminuição do espaço prometido ou
legitimamente aguardado como espaço verde público? Como poderá aceitar-se
passivamente a mutilação de um bem precioso pela sua raridade, numa cidade que
tem crescido mal e de forma em muitos casos agressiva?
Tem sido publicamente afirmado que os cidadãos que se erguem em defesa do Parque o
fariam em obediência a um modelo ‘rural’ para o Porto. Perante a crueza dos
números referidos, esse argumento cai por si. Como qualquer espírito isento
reconhecerá, o empobrecimento contínuo do património vegetal da cidade, e
particularmente do seu património arbóreo público e não público — isso sim, é
anti-cidade. Urbe consolidada desde há muito, o Porto não necessita, para se
afirmar como cidade, de impor o betão onde ele não é necessário.
Pelo contrário, o que o Porto necessita actualmente é de reabilitar o seu espaço público, de abrir a cidade a outras funções que não apenas aquelas que dependem do edificado, e em especial de
preservar os seus espaços verdes, e até de criar novos parque e jardins. O que
decerto não precisa é de desfigurar, destruir ou empobrecer aqueles que já
possui, e certamente não o mais importante e utilizado de todos eles, ainda
recente e já ameaçado na sua integridade.
Afirmou-se também publicamente a necessidade de ‘densificar’ o Porto, como justificação
das chamadas ‘frentes urbanas’ do Parque. Invocando de maneira duvidosa o
exemplo prestigioso de Barcelona, deu-se a entender que urbanizar equivale a
edificar onde quer que haja um espaço ‘expectante’, sem atender à diminuição da
qualidade da vida urbana que daí resultaria. Viver numa cidade não significa —
ou não deveria significar — viver em zonas de tal modo densas que o cidadão
acaba por ser agredido em sua própria casa pelo ruído circundante, ou fora de
casa pela circulação saturada e caótica, pela impossibilidade de caminhar com
segurança pelas ruas e praças, de passear o seu bebé, de brincar com os filhos,
de se espraiar com os amigos, de se refugiar do bulício em praças, parques e
jardins acolhedores e abertos à cidade.
Foi-se ao ponto de invocar o centro histórico, cuja ‘densidade’ seria um exemplo que
autorizaria a via da ‘densificação’. Tal argumento revela ausência de
perspectiva histórica: o apinhado de casas e ruas do centro — cuja recuperação
é aliás urgente antes que seja totalmente gangrenado pelo abandono, decadência
e ruína — foi erguido quando o espaço não-urbano, o espaço apenas
semi-urbanizado ou ainda em grande parte rural, começava de imediato, andadas
apenas poucas centenas de metros. Hoje, com a malha muito mais cerrada de um
espaço urbanizado muito mais vasto e com um modo de vida muito mais esgotante,
a prioridade tornou-se definir e assegurar espaços de respiração e
descompressão, por forma a proporcionar aos habitantes uma protecção e um
abrigo perante condições de vida excessivamente artificializadas, que destroem
ostensiva ou imperceptivelmente a sua paz e a sua saúde e, afinal, a sua
possível felicidade.
Têm também alguns invocado o argumento financeiro, pretendendo convencer-nos de que
não é possível evitar sacrificar parte da área que naturalmente deveria
pertencer ao Parque, a pretexto de poderem ser pagos compromissos decorrentes
da sua criação. Tal argumento, porém, não colhe. Os portuenses não tiveram
acesso, até hoje, a dados claros que apoiem tal pretensão. Membros do próprio
executivo camarário afirmam desconhecer o que a possa justificar. Pode supor-se
que operações de honestidade e legalidade duvidosas poderão estar a condicionar
o destino do Parque. Admitindo, no entanto, o argumento, haveria sempre a
possibilidade de recorrer a outros terrenos do património municipal para saldar
tais compromissos. Por que razão haveria isso de ser feito à custa do próprio
Parque?
Este labirinto financeiro é de molde a suscitar uma desconfiança legítima. Já houve
quem citasse 6, 7 ou 12 milhões de contos — como já vimos quem referisse
‘algumas centenas de milhares de contos’. Haveria que não tentar iludir os
munícipes com malabarismos numéricos. A questão financeira nunca deveria ser
isolada da questão das prioridades. Qualquer verba que se invoque deveria ser
cotejada com as verbas atribuídas a numerosas outras intervenções na cidade,
cuja real justificação seria em alguns casos bem menos evidente que a da
não-mutilação do Parque.
E já que tanto se invoca o exemplo de Barcelona, seria talvez de introduzir
parcialmente no Porto o orçamento participativo tal como se diz ter feito a
capital catalã, no seguimento da experiência de Porto Alegre no Brasil. Essa
metodologia permitiria aos munícipes contribuir para a definição das
prioridades orçamentais e questionar, em matérias de interesse primordial para
a cidade, operações contestáveis e decididas sem qualquer discussão pública
prévia. Seria assim possível evitar factos consumados que depois se poderão
revelar como erros dificilmente reversíveis.
Para dar um exemplo ainda relacionado com o Parque da Cidade, talvez assim se
pudesse ter evitado abri-lo ao atravessamento por um viaduto de circulação
automóvel, o que se afigura uma desnecessária agressão aos seus frequentadores.
A ideia de interpenetrar mar e parque é em si sedutora. É duvidoso, no entanto,
que tenham sido tidos em conta factores relevantes de hidrodinâmica costeira. A
hipótese de que o Parque venha no futuro a pagar o seu tributo ao mar parece
ter sido ignorada. Não se põe em causa o talento reconhecido de um conceituado
arquitecto. Defende-se apenas que decisões desse teor ganharão em ser
contraditoriamente debatidas pelos cidadãos.
Com o Movimento pelo Parque da Cidade é todo um novo olhar sobre o Porto e as suas
prioridades que desponta, e a que se convidam os portuenses, independentemente
de preferências ou indiferenças partidárias.
José Carlos Marques
Presidente
da Direcção da Campo Aberto – Associação de Defesa do Ambiente
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