“O que está em causa não é só reinventar a Avenida, é falsificá-la”
por Hélder Pacheco professor e escritor – no Jornal de Notícias
«Apartir de meados do século XIX, no espaço compreendido entre a Trindade, Bolhão, Batalha, Carmo e, obviamente, a Praça Nova, o Porto desenvolveu a sua mais brilhante centralidade. A maior, a melhor e, diria, a única, porque as demais são arremedos ou provincianismos suburbanos. A ela estão ligados factos subjectivos como as personalidades literárias, artísticas, científicas e jornalísticas que frequentaram a Baixa (entre muitos, os escritores e poetas Camilo, Alberto Pimentel, Júlio Dinis, Soares de Passos, Arnaldo Gama, Teixeira de Pascoaes, Guerra Junqueiro, Ramalho Ortigão, os filósofos Leonardo Coimbra, Sampaio Bruno, Amorim Viana e Basílio Teles), e factos objectivos encarnados pelos próprios lugares onde uma concepção própria de cultura, requinte e lazer se desenvolveu.
Tais lugares são, por exemplo, os botequins e cafés, onde o Porto boémio, noctívago e bem-pensante se reunia. Alguns ficariam famosos, como o Guichard. Os cafés da Baixa constituíram verdadeira universidade, além de preencher os ócios portuenses em redor das mesas da bebida, ou nos jogos como as damas, o xadrez e o bilhar e outros.Outro factor relevante do brilhantismo da Baixa foram os teatros (como o Baquet, o Príncipe Real, o S. João e o Sá da Bandeira) e cinemas (como o Olímpia, o Batalha, o Águia d’Ouro, o Trindade, o Rivoli e o Coliseu). Pelos seus palcos passavam os mais famosos actores e nos seus ecrãs se estreavam as novidades do cinema de aquém e além-fronteiras. E havia restaurantes de renome e prestígio inexcedíveis pela cozinha que os distinguia, hotéis e pensões onde se aboletavam figuras ilustres e viajantes vindos ao Porto. E livrarias que editavam o melhor da literatura portuguesa. Além de lojas do comércio sempre à procura da última moda e atractivas em matéria de requinte arquitectónico. Quiosques e tabacarias, casas bancárias e a gare ferroviária de S. Bento, onde desaguava o universo e o Porto se ligava ao mundo (“…o célebre Lino, da Casa Lino junto aos Lóios (…) já contava 34 idas a Paris e uma a Lisboa.”, Rúben A.).
Esta civilização da Baixa, muito diferente do Porto rural, operário e piscatório de outras freguesias, era ainda caracterizada por personalidades cuja presença se distinguia boémios, actores, coristas, caixeiros, professores, cauteleiros, ardinas, vendedores ambulantes de flores, cautelas, gravatas, sorvetes e capilés, que enchiam as ruas de humanidade. Acompanhando esta permanente actividade, os transportes públicos – carruagens, americanos, eléctricos, autocarros, troleys, segundo a ordem do seu aparecimento – faziam da Baixa o centro nuclear de um eixo que irradiava em todas as direcções. E, como pano de fundo, nas artérias em torno da Praça (Sá da Bandeira, Almada, 31 de Janeiro, Clérigos) encontra-se alguma da mais notável arquitectura civil dos séculos XIX e XX, que as transformam em mostruário do espírito cívico portuense.
De tal espírito é paradigma a Avenida dos Aliados que, construída no território do antigo Bairro do Laranjal, coroou, na vigência da I República, o ciclo da modernização do centro do burgo, afirmando a cultura urbana e a vida social da cidade ao longo dos últimos cem anos. É evidente que o brilho do cosmopolitismo da Avenida se foi, lentamente, desvanecendo. Particularmente no último quarto de século, o seu ambiente animado e rutilante de cafés, sedes de jornais e de empresas, um prestigiadíssimo hospital, escritórios e até habitações, foi-se transformando em fantasma de si próprio, terra-de-ninguém e, quando não, abandono e desolação. A Avenida é, hoje, o espelho de meio século de políticas de desarrumação do centro, que conduziram à decadência da Baixa.
No entanto, se um vasto programa de revitalização e reabilitação deste espaço magistral e carismático se impõe como inadiável, nada justifica que se desfigure o que ainda resta do espírito do lugar – jardins, passeios e árvores, os seus atributos. A herança do Porto 2001, de alterar o chão e deixar o resto ao abandono, parece ter firmado raízes.
Requalificar o espaço da Avenida? Fazer regressar os bonitos candeeiros de ferro que foram substituídos pelos horrorosos postes de rotundas? Restituir à Praça a dignidade da sua placa central que, aos poucos, passou a uma nesga ovóide e vergonhosa? Acabar com as patológicas travessias de peões e resgatar a Praça para as pessoas? Substituir o túnel dos Congregados, retrato de uma sociedade que despreza os direitos dos deficientes à mobilidade? Acabar com o estacionamento selvagem de automóveis, e de autocarros a fazer horas? Transformar o espaço em redor da estátua de Garrett num sítio aprazível, com bancos (mas não de pedra), lagos, etc.? E mais coisas positivas? Sim, totalmente de acordo.
Agora que requalificadores promovidos a proprietários da História, em nome da transformação, abastardem as nossas referências e trapaceiem os nossos símbolos é um exercício absurdo de agressão à cidade. Com o visto do IPPAR! E o pior ainda está para vir, quando os requalificadores impuseram que das Cardosas à Câmara é Praça e tudo seja liberdade! E morra, de vez, a Avenida. É preciso ter desaforo!
Os pós-modernos devem aplaudir. Os apreciadores da modernização a martelo também. Por mim, que já vivi, vi e suportei muitas ofensas, direi, como meu pai, lojista honrado da Baixa do Porto, que estas coisas me revoltam as entranhas. Porque, afinal, o que está em causa não é só reinventar a Avenida, é falsificá-la.»
YESSSSSSSS
S. (de Sementinha 😉
Sim, sim, somos abrangentes … e realmente mais vale tarde do que nunca! Ou seja, responsabilidades haveremos de pedi-las, nós ou nossos filhos.
Um bom Ano de Esperança que, dizia a minha Avó, é a última a morrer.
Só espero que o Garret não abandone o pedestal em que o colocaram, triste com as pedras que vê!
EP (a que colecciona a raiva contra este urbanismo)