16 de Agosto de 2007
O projecto da Avenida Nun’Álvares, no Porto, além de contradizer a apregoada prioridade à recuperação da Baixa, configura várias opções erradas que justificam uma intervenção pública da Campo Aberto. O projecto enferma de uma concepção urbanística ultrapassada (a «nova cidade» como ruptura violenta e até rasura da cidade antiga e de antigas vivências) e insustentável (o desenho urbano subordinado ao uso do automóvel, a crença na construção desenfreada como motor de desenvolvimento e meio preferencial de criação de riqueza). E sob ele esconde-se a ameaça mais séria que alguma vez foi feita ao Parque da Cidade.
A Av. Nun’Álvares, que ligará a Praça do Império à Av. da Boavista, atravessando a Foz e Nevogilde, é uma das 24 UOPG’s (Unidade Operativa de Planeamento e Gestão) definidas no novo PDM do Porto, em vigor desde Fevereiro de 2006 após um processo de discussão e aprovação que durou mais de dois anos. As UOPG’s são retalhos da cidade que, embora condicionados por princípios genéricos (como sejam usos e índices máximos de construção), serão objecto de planos de pormenor que definirão as regras a que a ocupação do solo deverá obedecer. O facto de a Câmara Municipal do Porto, por decisão aprovada pelo executivo municipal no passado dia 17 de Julho, ter escolhido a Av. Nun’Álvares como primeira UOPG a avançar, adiando para data indefinida as muitas UOPG’s que há a resolver na cidade consolidada, é sintoma da inflexão de prioridades de um executivo que fez da reabilitação da Baixa a sua bandeira.
Seguindo os trâmites usuais, o anúncio da discussão pública sobre a Av. Nun’Álvares e respectivo projecto urbanístico foi publicado no DR em 6 de Agosto, e a discussão deverá decorrer de meados de Agosto a meados de Setembro. Esta atracção das discussões públicas pelos calores de Agosto é, em Portugal, uma lei física tão indiscutível como a da gravitação universal — e é também um modo de tornear as regras democráticas a que os poderes públicos deveriam ter pudor de recorrer.
Os números do projecto causam alguma perplexidade: 1200 novas habitações, 3000 novos habitantes. De onde virá tanta gente? Ainda sobrarão potenciais novos habitantes para a Baixa que se quer repovoar? E não será irrealista sonhar com mais uma «nova centralidade» sem antes se avaliarem anteriores aventuras especulativas como a da «nova cidade» das Antas?
A Campo Aberto contesta, portanto, não apenas a prioridade dada à construção nova em detrimento da reabilitação, como a própria viabilidade de um tal surto construtivo. Há o risco de à cidade histórica, abandonada, se adicionarem pedaços de cidade que nunca chegarão a sê-lo, e ficarão tão só como monumentos à megalomania e ao desperdício — desperdício de dinheiro mas também de recursos naturais insubstituíveis.
Em grande parte do seu trajecto, a Av. Nun’Álvares terá, de cada lado, uma cortina ininterrupta de prédios de cinco pisos. Para uma freguesia como Nevogilde, onde predominam as moradias unifamiliares, essa dupla muralha representa uma alteração brutal no tecido urbano. E o efeito de barreira é acentuado pelo próprio perfil da avenida: 37 metros de largura, com separador central e três faixas de rodagem em cada sentido. É verdade que a largura não é um mal em si, pois permitiria talvez uma arborização mais generosa do que a que há noutras ruas de Nevogilde e da Foz. Mas, mesmo que se eliminem faixas de rodagem (e é indispensável fazê-lo para que não se crie, numa zona residencial, uma pista de corridas), a largura é sempre uma tentação: veja-se o que tem acontecido na Av. da Boavista e na Estrada da Circunvalação, onde, com pretextos diversos, a arborização central foi sendo eliminada em vários troços.
Mas a largura da avenida é também um óbice à conservação das ribeiras de Nevogilde e da Ervilheira no estado natural. O que lemos no projecto é que estas ribeiras vão ser de facto artificializadas em grande parte do seu percurso. A ribeira de Nevogilde é apresentada como excepção, embora ela tenha sido recentemente entubada, mais a montante, para a construção de um condomínio na Av. da Boavista (em frente à entrada nascente do Parque da Cidade), e não se perceba como é possível mantê-la naturalizada (como mostra o mapa da proposta) no segmento que atravessa a Av. Nun’Álvares. E a preservação das ribeiras e das suas margens liga naturalmente à questão dos espaços verdes. Os campos de Nevogilde, muitos deles ainda cultivados e abrigando ecossistemas importantes, poderiam ser convertidos em pequenos parques ou jardins que atenuassem a carga construtiva e pudessem ser fruídos pelos novos moradores. É de pasmar que o projecto preveja menos de 3 hectares de área verde (um décimo da área de edificação planeada) e a confine a uma estreita língua perto da Praça do Império. No mínimo, a área verde deveria ser quintuplicada e estendida até Nevogilde.
Mas há sempre o álibi do Parque da Cidade: quem quiser verde, só tem que atravessar a Av. da Boavista. Sucede que ele não chega para todas as encomendas e acusa mesmo sinais de sobrecarga. E a Av. Nun’Álvares bem pode ser a estocada final na ideia de um parque urbano onde é ainda possível alguma comunhão com a natureza. É que, olhando para as seis faixas que terminam abruptamente na Av. da Boavista, há naturalmente quem se pergunte por que não hão-de elas continuar até Matosinhos. Assim, como num passe de mágica, deixamos de falar de uma via de carácter urbano, destinada a servir uma zona residencial, para falarmos antes de uma via rápida de atravessamento — ou, como se diz na gíria, de uma «via estruturante»: uma via com vida própria e que se recusa a ser travada na sua missão de estruturar.
A ideia medonha de bissectar o Parque da Cidade com faixas de rodagem, automóveis, ruído, fumo e desassossego, embora não tenha sido oficialmente estudada, é uma «questão pertinente», nas palavras de Jorge Carvalho, urbanista que coordenou o projecto. O vereador Manuel Pizarro diz que a via «pressupõe alguma reflexão sobre a construção de uma via no Parque da Cidade a ligar o Porto a Matosinhos», e acrescenta que o seu partido não tem «uma posição fechada sobre esta matéria». O próprio autor do Parque, Sidónio Pardal, não vê objecções a que ele seja rasgado por uma via em túnel ou à superfície. O vereador do Urbanismo, Lino Ferreira, considerando embora que «essa discussão deverá ficar para outra altura», também não descartou a ideia. [Citações do JN de 18 de Julho de 2007.]
Como é que a ideia de um parque verde foi de tal modo desvalorizada e adulterada que há tanta gente a encarar sem arrepios essa ideia destruidora? Essa preparação mental tem uma história. Começou com a ligeireza com que se admitiu a construção de um segundo viaduto no Parque da Cidade, então para servir o metro: obra de autor, com assinatura de prestígio, só «valorizaria» o Parque. Continuou com as corridas de automóveis, que convertem o Parque durante fins-de-semana inteiros em simples bancada desse fumarento espectáculo. Houve ainda concertos ruidosos ao ar livre em palcos improvisados sobre a vegetação. No limite norte, junto à Circunvalação, arrancaram já as obras da «cidade desportiva» do Sport Clube do Porto: muito lama, muitos buracos, e várias palmeiras transplantadas. E, há poucos dias, chegou-nos notícia que parecia anedota, mas pudemos confirmar no local: rasgou-se, no Parque da Cidade, entre o queimódromo e a Praça Cidade de Salvador, uma pista de aterragem com 700 metros de comprimento e 30 de largura; o próprio queimódromo foi alargado com terraplenagens; e, onde havia terra e vegetação, há agora mais 4 hectares de piso asfaltado e impermeabilizado.
Cabe perguntar se esta intervenção, feita à pressa para acolher uma corrida de aviões, é legal, e se o novíssimo aeródromo veio para ficar. Os limites de impermeabilização definidos no PDM foram respeitados? E o Parque é agora receptáculo de todas as aventuras e de tudo quanto não cabe noutro sítio? Este abastardamento do Parque da Cidade, de que a improvisada pista para uma competição ambientalmente reprovável é só o exemplo mais grotesco, precisa de ser combatido. Os hectares agora roubados ao Parque têm que ser devolvidos ao verde.
É necessário alterar o projecto da Av. Nun’Álvares, para que ele não seja uma faca apontada ao coração do Parque da Cidade. Duas faixas em cada sentido, uma delas para transportes públicos, são mais do que suficientes para moradores e para quem mais precise de lá passar. Não se queira fazer uma auto-estrada nos campos de Nevogilde: é mau que a Câmara, nos tempos que correm, incentive a tal ponto o uso do automóvel. E não se construam tantos nem tão altos prédios, pois quanto mais inóspito e denso for o local menos gente há-de lá querer morar.
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