A PROPÓSITO DE 2014 ANO INTERNACIONAL DA AGRICULTURA FAMILIAR
Por decisão da 66ª Sessão Plenária da Assembleia Geral das Nações Unidas, o ano de 2014 será dedicado à agricultura familiar como reconhecimento da sua contribuição para a segurança alimentar e para a erradicação da pobreza no mundo.
Segue-se um artigo, publicado no início de 2014 no jornal Quercus Ambiente, escrito a pedido deste pelo atual presidente da direção da Campo Aberto, com pequenas adaptações.
Três das ilustrações pertencem à revista estadounidense The Mother Earth News, fundada em 1970, que exprimiu com originalidade e impacto o «back-to-the-land-movement» ou movimento de regresso à terra, que unia o então recente movimento ecológico, o movimento pelas energias alternativas e pela autossuficiência energética e alimentar, e ainda hoje continua a exprimir. A outra ilustração reproduz a capa de um número recente da revista francesa 4 saisons du jardin bio (as 4 estações da horta-jardim biológico), revista quase tão antiga como a anterior e que com pequenas diferenças (mais ênfase na horticultura e na ecologia que nas energias, sem descurar estas) exprime a mesma mensagem e o mesmo movimento.
Em Portugal, os movimentos ecológicos e conservacionistas desde os anos 1970 sempre mantiveram forte ligação com as correntes da agricultura biológica, ecológica, mais tarde apelidada de sustentável. Hoje, sem que tivesse havido uma relação genealógica e cronológica com eles, são os movimentos da permacultura e das cidades em transição, mais ligados à cultura internáutica digital, que continuam a tradição que nos EUA, França, Alemanha, Inglaterra e outros países ditos «avançados» e também com repercussões nos que outrora se designavam como «Terceiro Mundo», radicam nas correntes de que aquelas duas revistas são e continuam a ser a expressão.
Temas no artigo
Objetivos oficiais da comemoração
Imagem negativa moderna da agricultura
Farrebique Biquefarre – duas épocas nos campos
Êxodo, despovoamento, guerra e crise
Miséria imerecida do mundo rural
Debandada camponesa e degradação da imagem dos campos
Trabalho agrícola livre em pequena escala
Formas económicas e sociais
Especulação financeira e alternativas
Objetivos oficiais da comemoração
O objetivo principal desta celebração é promover em todos os países políticas públicas que favoreçam o desenvolvimento sustentável de sistemas de produção agrícola baseados em unidades familiares, fornecer orientações para pôr em prática essas políticas, incentivar a participação de organizações de agricultores e despertar a consciência da sociedade civil para a importância de apoiar a agricultura familiar.
Por ela se entende o cultivo da terra realizado por pequenos proprietários rurais, tendo como mão-de-obra essencialmente o núcleo familiar, em contraste com a agricultura patronal, que utiliza trabalhadores contratados, fixos ou temporários, em propriedades médias ou grandes.
Imagem negativa moderna da agricultura
À imagem negativa da agricultura não é alheio o facto de os trabalhadores rurais terem estado durante milénios ao serviço dos proprietários da terra, ora como escravos, ora como servos da gleba, ora como trabalhadores assalariados, em todos esses casos sujeitos a uma exploração intensa em que muitas vezes não podiam sequer usufruir dos bens por eles próprios produzidos. Situação que nos séculos mais recentes foi agravada pelas plantações de tipo colonial e outras formas de sujeição da atividade agrícola à exportação.
Em França foi a Revolução de 1789 que permitiu o surgimento de uma classe de agricultores proprietários da terra que trabalhavam de forma independente, e em geral podiam alcançar uma vida digna, situação alterada no Século XX com o intenso desenvolvimento industrial e o êxodo da população camponesa, devido por um lado às grandes guerras e por outro à pressão da indústria, ávida de mão de obra e de consumidores para os seus produtos.
Farrebique Biquefarre – duas épocas nos campos
Dois filmes, realizados em França com um intervalo de 38 anos pelo cineasta e antropólogo Georges Rouquier, mostram bem como aos êxitos da industrialização da agricultura ocorridos após a segunda guerra mundial se devem também enormes perdas. Se a população da aldeia ficcional de Farrebique ( 1946) é de modestas posses e tem que enfrentar um trabalho árduo, na aldeia de Biquefarre (1983) uma população que aparenta mais conforto e riqueza foi atingida por males desconhecidos quarenta anos antes: o perigo dos pesticidas e outros produtos químicos de que os agricultores são as primeiras vítimas, por vezes mortais, o êxodo rural de massa que desertificava as aldeias, a pressão das «cadeias infernais» de trabalho importadas dos métodos da indústria. À sobriedade e dificuldade quotidianas de Farrebique, porém vividas com certa alegria e despreocupação, sucede a tensão, a pressão, a angústia financeira de Biquefarre.
Êxodo, despovoamento, guerra e crise
Durante a segunda guerra mundial, além da pressão da tendência de longo prazo a favor do prosseguimento do êxodo, o que levou a filósofa francesa Simone Weil a falar do desenraizamento camponês como a pior forma do desenraizamento geral que atribuía ao homem moderno, existiu também um temporário regresso ao campo, de tal forma as condições de vida nas cidades se tornavam difíceis e os custos inalcançáveis para a maioria das pessoas.
Fenómeno semelhante está a acontecer com a atual crise económica, nalguns casos aliás com apoio numa opção livre e numa cultura e mentalidade que revaloriza a terra e a proximidade com a natureza. A agricultura familiar e de pequena escala tem sido considerada por alguns economistas como mais produtiva do que a a economia de tipo empresarial e louvada pelo facto de se basear num trabalho realizado em família, que ofereceria a cada um possibilidades de se realizar quer no aspeto afetivo quer no aspeto funcional, e que poderá vir a recuperar uma certa forma não só de sustento mas de prosperidade em termos económicos.
Miséria imerecida do mundo rural
Por outro lado, a agricultura familiar, quando associada a situações de miséria e carência, tem também constituído uma forma de sobrexploração do trabalho humano. Em Portugal, com a revolução liberal, não chegou a criar-se, a não ser de forma excecional, uma classe de pequenos agricultores livres, independentes e economicamente viáveis, como em França. Surgiu antes em certas regiões a propriedade latifundiária cultivada por trabalhadores sem terra proletarizados, e noutras a predominância do minifúndio dividido e subdividido continuamente, que não permitia a viabilidade económica dessas pequenas unidades.
Foi essa situação que levou D. António Ferreira Gomes, Bispo do Porto no tempo do regime de Salazar, a denunciar, no final dos anos 1950, na sua célebre «Carta» que lhe valeu o exílio, a «miséria imerecida do mundo rural». O desenvolvimento, que depois se quis contrapor a essa miséria, tal como foi concebido no Século XX, consistiu afinal na quase completa supressão desse mundo rural, com a aceleração do despovoamento dos campos.
Debandada camponesa e degradação da imagem dos campos
Entre nós, o êxodo assumiu a forma de um movimento emigratório, autêntica debandada em massa nos anos 1960 que praticamente liquidou formas sociais quase feudais como os contratos de caseiros e rendeiros, mas que deixou também inviabilizada a continuidade agrícola de regiões inteiras. Seguiu-se a desvalorização e rebaixamento da dignidade do mundo camponês e da sua cultura, uma cultura até há pouco de analfabetos, é certo, porém de enorme riqueza criativa como se manifestou na música (vejam-se as recolhas de Giacometti e de Armando Lessa, por exemplo), na tecnologia (toda a obra etnográfica de Jorge Dias e da escola de Ernesto Veiga de Oliveira, Fernando Galhano e colaboradores), e na arquitetura vernácula (veja-se a obra monumental Arquitectura Popular Portuguesa, resultante do inquérito feito nos anos 1960 pela Ordem dos Arquitetos, além de várias outras sobre o mesmo tema).
Trabalho agrícola livre em pequena escala
No Ano Internacional da Agricultura Familiar, podemos optar por pôr na ordem do dia a viabilização da agricultura familiar, com vista a revitalizar muitas zonas rurais hoje abandonadas ou deprimidas, já quase só habitadas por uma população envelhecida e que em breve não poderá dar continuidade ao que essas zonas ainda mantêm de próprio, quer em termos de paisagem quer em termos de estilo de vida e de especificidade cultural.
Essa revitalização poderá também retomar hábitos de convivência saudáveis e solidários. Com todas as suas limitações e espartilhos, que foram e são ainda reais, a vida nas aldeias, em contrapartida, tinha, ainda tem por vezes, e pode voltar a ter, uma coesão e resistência, quer nas épocas boas quer nas desfavoráveis, propícias à entreajuda e à partilha.
Os que procuram uma vida mais saudável e mais em harmonia com a natureza, muitas vezes são também motivados pela compreensão do papel positivo que pode ter a revitalização dos campos com base em valores, ideais e tecnologias ambientalmente positivas. Nessa ótica, as aldeias e a agricultura familiar ou também de pequenos grupos, pequenas cooperativas e empresas ou comunidades, podem contribuir fortemente para a resolução da crise ecológica atual, crise essa que, quando manifestar todas as suas consequências, terá proporções bem mais formidáveis do que a já temível atual crise económica.
Essa revitalização poderá proporcionar uma oportunidade de realização e felicidade, sem que isso signifique subestimar as dificuldades e obstáculos, que não deixarão de se apresentar, ou iludir-se com uma visão fantasista de um paraíso contínuo de onde pudesse estar ausente o esforço, a persistência e a sobriedade nos desejos e ambições materiais, sem que esse esforço represente necessariamente uma dureza excessiva.
Formas económicas e sociais
Ao estabelecer-se uma diferença dicotómica entre agricultura familiar e agricultura patronal, poderemos estar a cair numa simplificação exagerada que oculta diversas outras realidades da agricultura no mundo de hoje.
A agricultura de tipo empresarial apresenta várias modalidades muito diferentes entre si. A pequena agricultura familiar, embora possa caraterizar-se como uma pequena empresa familiar, na verdade é anterior a uma mentalidade de tipo empresarial, no sentido corrente do termo, e dificilmente se harmoniza com ela, embora todo o ambiente económico atual a empurre nessa direção.
No que se refere às médias e grandes empresas agrícolas, incluindo algumas que são propriedade de uma só família e na qual os membros da família tomam alguma parte no trabalho corrente, seja a nível de gestão seja mesmo a nível de trabalho braçal ou físico, o recurso extensivo a mão de obra permanente desde logo estabelece uma primeira grande diferença com a pequena agricultura familiar. Se bem que esta também possa recorrer episodicamente a mão de obra exterior paga, ela não atinge em geral dimensão superior ao trabalho fornecido pela família.
Especulação financeira e alternativas
Pouco há em comum entre uma pequena empresa familiar e uma grande unidade de monocultura de tipo empresarial capitalista e de sociedades por ações, sujeita à especulação em que as culturas não passam de «produtos» económico-financeiros (commodities). Nos Estados Unidos, há muito tempo que os agricultores, no sentido originário do termo (farmers) desapareceram das estatísticas. Encontramos apenas tratoristas, ceifeiros-debulhadores mecânicos, aplicadores de pesticidas (seja qual for a terminologia aplicada). Não que não existam agricultores. Como remanescentes de uma época suprimida, ou como uma esperança ainda ténue de uma nova filosofia e prática da agricultura, assente em pilares como a sustentabilidade, a ecologia, a biodiversidade, geralmente exercida por gente instruída e culta em pequenas ou médias unidades e frequentemente associada a conhecimentos profundos e vastos, de caráter holístico e não ultrafragmentado e ultraespecializado como a agricultura convencional dita de vanguarda.
Thomas Jefferson, um dos pais fundadores dos Estados Unidos, está ligado a uma imagem ainda romântica da agricultura familiar hoje quase desaparecida nos países economicamente ditos mais «avançados». Em livro há três anos publicado nos Estados Unidos1 mostra-se o abismo entre a retórica corrente sobre a vida dos agricultores, denunciada pelo autor como um mito no sentido pejorativo, que faz de conta que o ideal jeffersoniano ainda corresponde a algo de real na vida americana, e a rudeza com que a especulação económica e financeira preside hoje aos destinos da vida agrícola. No livro pugna-se por uma agricultura que em parte restaure esse ideal e o torne de novo atuante. Ideal que pode conter também algo de mítico, mas agora num sentido positivo, orientador, que vislumbra o futuro através das névoas cerradas do presente.
No caso português, não seriam talvez as agriculturas altamente produtoras, cientificizadas, tecnologizadas (por exemplo a forma como agora se cultivam olivais, muito gabadas pela sua alta produtividade, mas que destroem e comprometem solos sem um piscar de olhos) que seriam o futuro desejável mas sim a agricultura biológica, a permacultura, os movimentos da «transição», que já atraem muita gente e muitos jovens.
O Ano Internacional da Agricultura Familiar corre o risco de lançar alguma ambiguidade na imagem pública da agricultura se não for capaz de ajudar a distinguir entre o mito pejorativo e o ideal positivo, mesmo com a sua carga mítica criadora e motivadora. Cabe aos movimentos que propõem uma agricultura em maior harmonia com a natureza dissolver a névoa e apontar caminhos de esperança e de futuro, sem que, por ingenuidade ou subestimação das dificuldades, deem o flanco a certos académicos que se comprazem em escarnecer como «mítico» esses movimentos e as ideias que eles transportam.
José Carlos Marques
1 (The Agrarian Vision: Sustainability and Environmental Ethics, de Paul Thompson, University of Kentucky Press, 2010)
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