Perspetivas, Ideias e Práticas – Pensar Global, Agir Local… e vice-versa!

por | Jul 13, 2015 | sem categoria | 0 Comentários

* O MOVIMENTO ECOLÓGICO E A CRÍTICA DA ECONOMIA
/ DOS LIMITES DO CRESCIMENTO AO MOVIMENTO PELO DECRESCIMENTO
O MOVIMENTO GALEGO PELO DECRESCIMENTO: DEBATE NO PORTO
Texto colocado em 27 de junho de 2018 e 4 de julho de 2018
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* NÃO FOI PARA MORRER QUE NÓS NASCEMOS
Texto colocado em 2 de maio de 2018
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* PARA ALÉM DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL — A REGENERAÇÃO DOS ECOSSISTEMAS
Texto colocado em 1 de abril de 2018 – ver abaixo
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* OS ECOLOGISTAS E A ENCÍCLICA LAUDATO SI’
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* PARA UM BANCO SOCIAL
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Foto Glória Rodrigues

Foto Glória Rodrigues

Esta rubrica é um espaço de debates, perspetivas, ideias e práticas. Este ano de 2018 foi já colocado um contributo para a história do movimento ecológico em Portugal e sobretudo no Porto e a partir dele, bem como uma intervenção num evento do Conselho Nacional para o Ambiente e o Desenvolvimento Sustentável, feita pelo presidente da Campo Aberto em nome da Confederação Portuguesa das Associações de Defesa do Ambiente. Antes disso, nos anos anteriores, tínhamos já aqui colocado uma reflexão sobre a recente encíclica Laudato Si’ escrita por Jorge Leandro Rosa, membro da direção da associação, por um lado. Por outro lado, a proposta de um banco social (que já deveríamos ter publicado há muito mais tempo pois esteve prevista para a nossa publicação em papel Ar Livre, devido a esta estar temporariamente suspensa), que o economista José Carlos Ferraz Alves apresentou em maio de 2014 numa sessão sobre cooperativismo por nós promovida e já antes no debate intitulado «Que Porto Queremos».

Em junho de 2018, incluímos alguns elementos sobre o tema «O movimento ecológico e a crítica da economia» a propósito da realização no Porto, em 7 de julho do mesmo ano, de um debate e apresentação da rede galega a favor do decrescimento. com destaque para a apresentação dessa iniciativa por parte de Jorge Leandro Rosa.

Convidamos os interessados a comentarem estes vários textos ou a enviarem contributos escritos sobre outros temas para esta rubrica «Perspetivas, Ideias e Práticas».

Foto Filomena Lopes

Foto Filomena Lopes

INICIATIVA NO PORTO
Na Galiza tem vindo a desenvolver-se também a corrente do decrescimento. A Campo Aberto apoiou e apoia a realização do debate, tolerante e controverso, aberto à convergência, entre as várias correntes do pensamento ecoambiental sobre a economia, cada uma com a sua visão própria mas em que é possível um diálogo convergente e franco sobre alguns grandes eixos. Por iniciativa de Jorge Leandro Rosa, membro da direção, tomada no entanto a nível individual, mas que a associação veio a apoiar, dedicam-se no Porto a esse tema e debate o dia 7 de julho de 2018, sábado, com as seguintes atividades:

Sábado, 7 de Julho, às 16h, no Espaço Gazua
(Porto, Rua João das Regras, 151, à Praça da República):
Apresentação da «Rede de decrecemento Eo-navia, Galiza i O Bierzo» e do 1º Congresso do Decrescimento. Debate sobre bio-regiões, redes de resiliência e organização de iniciativas de decrescimento.

7 de Julho, às 21h30, no Gato Vadio (Porto)
(Rua do Rosário, 281):
O decrescimento: escolha colectiva ou inevitabilidade? Um debate com Jorge Leandro Rosa, Miguel Anxo Abraira e Iolanda Teijeiro Rey.

Seguem-se textos de introdução a essas iniciativas.

 

 

 

O DECRESCIMENTO VEM AO PORTO
Jorge Leandro Rosa

Descobrimos, nas últimas semanas de preparação deste encontro, que o decrescimento é um tema que já vinha interpelando muitos de nós. Esse interesse contrasta com a religião laica do crescimento diariamente praticada pelo Estado e pelos meios de comunicação. Embora aparentemente incontestada, essa crença expõe hoje a sua falência nos planos ecológico, sócio-económico e simbólico.

Ao longo dos anos, disseram-nos que vivíamos numa sociedade miraculosa, onde o crescimento tudo assegurava: o bem-estar e a igualdade de oportunidades, a democracia e a sociedade de consumo para todos. A nenhum de nós escapa que tudo isso está na iminência de se perder, embora os sacerdotes do «Crescimento» continuem a invocar os mesmos deuses. E como acontece com as divindades que já não parecem capazes de operar prodígios, estas começam a pedir-nos sacrifícios, enquanto tudo se torna mais caótico, mais imprevisível e presa de novos «homens fortes».

Podemos contrariar o enlouquecimento geral trazido pelo fim iminente da «sociedade de crescimento» que as fontes energéticas fósseis instalaram e agora já não podem assegurar. Podemos ainda travar a destruição, hoje extrema, dos ecossistemas de que os humanos dependem. Podemos criar alternativas à entrada da sociedade na desigualdade nunca antes vista, nos autoritarismo e nacionalismo crescentes, na xenofobia, na guerra e no fascismo tecnológico. E, mudando de rumo, podemos construir vidas felizes mesmo sabendo que os recursos disponíveis serão menos abundantes a breve prazo.

Ao contrário da globalização, o decrescimento viceja na pequena e na média escala: nas bio-regiões, nas comunidades locais, nos circuitos de proximidade, na resiliência dos espaços locais e regionais. Por isso convidámos os nossos amigos da «Rede Decrecemento Eo-Navia, Galiza, O Bierzo». São nossos próximos no ecossistema, na língua, nos problemas partilhados. Queremos conhecer a origem, o percurso e os objectivos dessa rede de decrescimento. Queremos, também aqui, construir redes de decrescimento.

(Participantes: Álvaro Fonseca, activista eco-social,  ex-docente universitário na área das ciências da vida, Portugal; Jorge Leandro Rosa, ensaísta e tradutor, membro da direcção da Campo Aberto, Portugal; Miguel Anxo Abraira, activista do decrescimento, Associação Véspera de Nada, Galiza; Iolanda Teijeiro Rey, activista do decrescimento, Galiza)

Veja a página do evento (em constante actualização).        

Versão precedente (e complementar):

Na Galiza estão a dar-se fenómenos estranhos, palavras e actos a que não estamos habituados em terras lusas. Indubitavelmente, fala-se de decrecemento na praça pública, tendo sido realizados dezenas de encontros e debates sobre este inusitado tema, que tantos receios parece levantar deste lado do rio Minho. Acontece que os nossos amigos galegos preparam desde há muitos meses, com grande serenidade e propósito, um Congresso sobre o decrescimento na Galiza. Será já em Outubro e esperam-se pessoas e colectivos de toda a Galiza e de outras regiões da Península Ibérica. Para isso também criaram a «Rede de Decrecemento Eo-Navia, Galiza, O Bierzo». Nós concordamos com eles: não iremos por bom caminho seguindo as arengas do crescimento com que nos bombardeiam dos dois lados da fronteira. O decrescimento reabre o exercício do pensamento e coloca-o diante das nossas acções.

Os nossos amigos «decrescimentistas» também levantam a voz: no domingo passado, participaram activamente na grande manifestação que decorreu em Santiago de Compostela contra a reabertura da mina de cobre de Toro-O Pino. Estiveram lá com a palavra de ordem «Decrescimento ou barbárie». E fez todo o sentido lá terem ido: esta terá sido uma das maiores manifestações de protesto ambiental na história da Península, com mais de 80 000 manifestantes. Podem ver aqui algumas fotografias de um acontecimento eficazmente silenciado cá pelo burgo.

Mas nem tudo está perdido: convidámos a Rede de Decrecemento, assim como uma das associações nela participante, a Véspera de Nada, a virem apresentar ao Porto toda essa magnífica movimentação que nos enche de espanto. Pareceu-nos que não faria sentido ficarmos de fora. Estarão cá o Miguel Anxo Abraira e a Iolanda Teijeiro Rey, que nos vão contar esta história bem contada. E que aproveitarão para debater connosco a grande armadilha em que se tornou esta sociedade. Tudo falado na nossa língua comum e suas variações.

 

* O MOVIMENTO ECOLÓGICO E A CRÍTICA DA ECONOMIA
/ DOS LIMITES DO CRESCIMENTO AO MOVIMENTO PELO DECRESCIMENTO
José Carlos Costa Marques

Desde os anos 1960-70, quando surgiu com força nos países mais prósperos do então chamado Ocidente o movimento ecológico moderno contra a poluição, a destruição do ambiente e da natureza e a favor das alternativas energéticas e de estilo de vida, um dos principais alvos visados por esse movimento tem sido a economia, não em si mesma, mas no estado atual em que se encontra no contexto da aceleração dada pela revolução industrial. Não escapou a ninguém que a grande crise ambiental, em que a própria humanidade se sentiu ameaçada (tal como o exprimiram numerosas realizações a nível internacional, inclusive das Nações Unidas, com pontos altos na Conferência de Estocolmo de 1972 e na Cimeira da Terra no Rio de Janeiro em 1992), estava estreitamente ligada aos aspetos mais destrutivos que ia assumindo a atividade económica nas modalidades mais correntes, baseadas num intenso e exponencial uso de energia fóssil.

Foi então que surgiram correntes como aquelas que apontavam a inevitabilidade de limites físicos ao crescimento económico e a necessidade de repensá-lo como algo de forçosamente limitado, sendo pois impossível a miragem de um crescimento infinito ou ilimitado. Foi então que surgiram propostas como as do Crescimento Zero (na economia e paralelamente também no capítulo da população), como as da Economia Ecológica que, assente em intuições pioneiras de F. S. Soddy (1926), Nicholas Georgescu-Roegen ou Karl Polanyi e outros, se consolidou com Kenneth Boulding, Herman Daly e Robert Costanza, e sua economia da sociedade do estado estacionário, prolongando a crítica de conceitos como o Produto Interno Bruto, exercida pelo movimento ecoambiental desde os anos 1960-70,  conceito esse no qual se baseava toda a teoria do crescimento económico como chave do bem-estar das sociedades, desmentido nas aberrações ecológicas, humanas e sociais a que dava origem. O pensamento crítico de Ivan Illich centrado na denúncia da falácia do desenvolvimento e nas fragilidades das sociedades tecnológicas e profissionalmente ultraespecializadas (pensamento de que ficou recentemente disponível em português uma síntese panorâmica no seu livro de 1978 Para uma história das necessidades, Edições Sempre-em-Pé, 2018) é outro contributo importante a considerar.

Algumas dessas correntes evoluíram para a proposta do decrescimento como alternativa aos impasses ecológicos, sociais e humanos das economias industriais atuais, cujas debilidades ficaram bem patentes a partir da gigantesca crise de 2008, que abriu um ciclo económico e social em que ainda nos encontramos. Todas estas correntes contribuem para problematizar a necessidade de encontrar vias de solução ao estrangulamento histórico das sociedades modernas. A corrente do decrescimento tem vindo a desenvolver-se sobretudo em Itália e França e na Europa em geral, enquanto a economia ecológica tem mais expressão nos países de língua inglesa, embora possam ser vistas também como complementares. Nos Estados Unidos e na América Latina podemos considerar que as preocupações sociais e ecológicas se exprimem também no Movimento pela Justiça Ambiental, atento aos setores social e economicamente mais frágeis da sociedade. JCCM

* NÃO FOI PARA MORRER QUE NÓS NASCEMOS
José Carlos Costa Marques

Prefácio a um livro que tive o prazer de apresentar no dia 16 de abril de 2018, no Palacete dos Viscondes de Balsemão, no Porto, uma iniciativa do CITCEM – Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura Espaço e Memória, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, de colaboração com as Edições Afrontamento, do Porto, e com a Campo Aberto. Logo a seguir, uma comunicação que fiz no dia 23 de março no encontro do Conselho Nacional do Desenvolvimento Sustentável – CNADS, no Porto. Num e noutro caso, em última instância a responsabilidade das perspetivas expostas é minha e não compromete nem a Campo Aberto nem o CNADS nem a CPADA, Confederação Portuguesa das Associações de Defesa do Ambiente, embora tenha tentado transmitir tanto quanto possível um pensamento comum ou pelo menos partilhável no que se refere à CA e à CPADA.

«Não foi para morrer que nós nascemos». O movimento ecológico do Porto (1974-1982)
Prefácio ao livro de Bruno Madeira

Subtítulos colocados apenas nesta versão digital

Alterações climáticas, contaminação do ar, da água, dos solos e dos alimentos, doenças degenerativas em verdadeiras epidemias como o cancro e outras que têm em grande parte como causa a má qualidade do ambiente em que vivemos, a desflorestação ou, entre nós, a vaga recorrente de incêndios estivais ditos «florestais» (o que arde na verdade, quase sempre, não são «florestas» mas matos e matas) — os problemas relacionados com o ambiente e o património natural estão hoje reconhecidamente na primeira linha de urgência e gravidade, quer no plano nacional quer no plano internacional.

Coisa diferente é que sejam de facto encarados, na ação, com a premência que exigiriam, pelas sociedades, governos e instituições nacionais e internacionais.

Pistas e interrogações

Urgência e gravidade justificam que um trabalho de história contemporânea, que recorre a fontes escritas mas também a fontes orais, possa ser visto como de primeira importância. O reconhecimento público dos problemas do ambiente e do património natural deveria pois ter como consequência idêntico reconhecimento, por parte do público instruído e atento, quanto ao mérito deste trabalho de Bruno Madeira. Acresce que a qualidade da investigação feita e da sua expressão no texto, a relativa novidade de uma pesquisa que incide sobre uma década (1974-1985, sobretudo 1974-1982) a respeito da qual pouco existe escrito sobre os movimentos sociais em Portugal no domínio do ambiente e da natureza, e sobre uma área geográfica, o Norte, sobretudo o Porto e região, praticamente ausente dos poucos trabalhos que versam o tema, tornarão este livro indispensável a quem queira regressar ao assunto, ainda que à escala nacional.

As muitas pistas e interrogações que o trabalho suscita, quer no âmbito dos testemunhos, quer no dos factos, quer no das interpretações destes, quer ainda no do debate e análise das questões de fundo a que apelam as várias vertentes do tema (filosóficas, éticas, políticas, pragmáticas ou de ação), apontam para que este livro se torne um incentivo para pesquisas complementares. Se é certo que na década estudada os movimentos interventivos não tiveram o reconhecimento público que talvez merecessem, tendo sido tão subestimados como então foram os próprios problemas que procuravam enfrentar, a importância destes não escapa hoje a ninguém. O que deveria ser suficiente para fazer incidir um novo foco de atenção sobre o contributo pioneiro e corajoso que os grupos informais, associações, movimentos e cidadãos aqui estudados trouxeram ao país. Não para os exaltar mas para enfrentar com seriedade os erros que denunciaram.

Uma década riscada da memória?

Algumas personalidades, algumas fontes, alguns escritos sobre a história do movimento ecoambiental em Portugal tendem a considerar, ou dar a entender, que só em meados dos anos 1980  surgiu em Portugal «gente séria» no domínio da intervenção ecológica e ambiental — na década anterior há quem não veja senão ou sobretudo folclore, ou voluntarismo, ou romantismo ou radicalismo (hoje dir-se-ia talvez «fundamentalismo», acusação muito usada por quem não tem outros argumentos). A leitura deste livro revela bem a injustiça e incompreensão de tais juízos — e até por vezes a sua leviandade.

A maior lacuna que o trabalho de Bruno Madeira vem ajudar a preencher é a que resulta da subestimação do caráter internacional e mundial da cultura, da mentalidade e do posicionamento dos grupos e movimentos portugueses nele referidos. É certo que quase todos os que abordaram este tema referem equivalentes estrangeiros e autores de outras línguas que não a nossa que teriam influenciado esses grupos. Mas escapa-lhes em geral que os grupos portugueses referidos se inscreveram no grande arco histórico universal que então fez tremer os alicerces estabelecidos das sociedades modernas e atraiu multidões para a possibilidade de alternativas: o movimento da contracultura, por um lado, e, por outro lado, por vezes entrelaçados e indiscerníveis, os movimentos de contestação do sistema industrial vigente (fosse ele capitalista e liberal ou coletivista e totalitário). Ora isso é bem identificado neste trabalho.

Presença e atualidade hoje

O relevo desse caráter de rutura, que nas décadas seguintes viria a ser absorvida e controlada pelos grandes sistemas que sentiram o perigo que os ameaçava, está hoje mais oculto, tornando mais opaca a perceção do caráter inovador e pioneiro das intervenções aqui analisadas. No entanto, a parte mais «assimilável» do seu contributo está hoje omnipresente no «mainstream», no sistema dominante (muitas vezes cloroformizada, é certo). Os aspetos mais originais e profundos do acervo dos movimentos de rutura, esses — que a feliz antologia de documentos que encerra este livro bem ilustra — continuam presentes e atuantes, embora muitos não os saibam identificar, em movimentos como a permacultura, a luta de base contra as alterações climáticas, contra os alimentos transgénicos, ou a favor das energias renováveis suaves, da agricultura biológica, da alimentação saudável, e tantos outros.

Este trabalho desenvolveu-se mais ou menos pela mesma ocasião (2014) em que um pequeno grupo (três intervenientes nos acontecimentos nele descritos, Jacinto Rodrigues, Franklim Pereira e o autor destas linhas, e Rosa Oliveira e Ana Caldas) promovia no Porto, com o apoio da Fundação Escultor José Rodrigues e da Campo Aberto – associação de defesa do ambiente, uma série de atividades evocativas dessa década e das suas repercussões até hoje. Na série se incluíram alguns debates, uma exposição visual e escritos colocados na internet.* Nesse clima veio a revelar-se o interesse que mostraram pelo tema o Professor Doutor Gaspar Martins Pereira, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, e o Mestrando, hoje Mestre e Doutorando, Bruno Madeira, bem como o CITCEM – Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória, da FLUP. Aproveitando a ocasião que me abre este prefácio, a todos agradeço vivamente a atenção, cuidado e capacidade que aplicaram a este assunto.

Uma parte da investigação assentou em fontes orais sob a forma de entrevistas. Nela tomei parte, uma parte que sinto desproporcionada, lamentando a brevidade de alguns outros testemunhos e a impossibilidade de terem sido ouvidas mais algumas pessoas. Sei que tal se explica por razões fortuitas e longe de mim qualquer sombra de crítica ao autor neste particular. Pelo contrário, a Bruno Madeira fico devedor da enorme gentileza, atenção, cuidado e competência que sempre encontrei nos contactos que com ele tive.

E agradeço por fim o convite que me fez para escrever este prefácio.

Águas Santas, 16 de janeiro de 2017

 * https://www.campoaberto.pt/?p=1711036, https://www.campoaberto.pt/?p=1468513, https://jacintorodrigues.blogspot.pt

 

* PARA ALÉM DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL — A REGENERAÇÃO DOS ECOSSISTEMAS
José Carlos Costa Marques

Convidada pelo CNADS – Conselho Nacional de Ambiente e Desenvolvimento Sustentável a apresentar uma comunicação na Conferência A Estratégia Portuguesa 2030 à luz dos objetivos de desenvolvimento sustentável,  organizada por aquele Conselho, e que decorreu no Porto em 23 de março de 2018, a CPADA – Confederação Portuguesa de Associações de Defesa do Ambiente convidou a Campo Aberto a representá-la, o que ficou a cargo do nosso presidente de direção. Eis uma versão muito ligeiramente revista do texto lido na ocasião:

1.

Agradeço ao Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável a possibilidade de participar neste painel. E sobretudo a Nuno Sequeira (vice-presidente da Quercus e representante no Conselho CNADS da Confederação Portuguesa das Associações de Defesa do Ambiente – CPADA), que indicou o meu nome. Adverti-o, e devo agora igualmente advertir, que, se estou aqui na situação paradoxal de representar muita gente, estou sobretudo na de só me representar a mim próprio.

2.
Os objetivos de desenvolvimento do milénio, dos anos 2000, num total de oito, colocam em sétimo lugar «garantir a sustentabilidade ambiental». Os objetivos de desenvolvimento sustentável, num total de 17, que lhes sucederam em meados da segunda década do milénio, não alteraram essa subalternidade, tornaram-na até mais causadora de ambiguidade já que todos os 17 objetivos se apresentam como metas de «sustentabilidade». No contexto das Nações Unidas, podemos até compreender que condicionalismos diplomáticos e negociais tenham obrigado, na versão dos anos 2000, a empurrar este objetivo para o fim da lista. No nosso contexto, que não é esse, em que a exigência de verdade e lucidez deve predominar, tal objetivo não pode deixar de ser o primeiro — pois ele é a condição sine qua non para que os restantes se possam cumprir. Foi-nos indicado que, na abordagem desses objetivos, se destacariam aqui três aspetos: indústria e economia circular; conhecimento do mar (biologia marinha) e biodiversidade nos oceanos; e alterações climáticas.

3.
Quanto à indústria. Não é novidade para ninguém que, embora antes disso tivesse havido disrupções ecológicas, só com a revolução industrial surgiu a questão ambiental no sentido moderno. Ela tem assim, grosso modo, pouco mais de 200 anos e foi-se agravando a ritmo exponencial até se tornar na crise global generalizada em que nos encontramos mergulhados. Isso explica por que razão, ao surgir com o ímpeto de todos os grandes movimentos históricos, o movimento ecológico universal, no vigor dos anos 1960-1970, tenha apresentado uma crítica vasta, acerada, profunda e realista da civilização industrial moderna, rasgando o manto diáfano da fantasia que era a sua imagem predominante para destapar a nudez crua da verdade, glosando o célebre dito queirosiano. E decerto essa crítica incidia de igual modo sobre a economia tal como se apresentava, com a curiosa particularidade de abranger tanto o modelo ocidental dito capitalista como o modelo soviético dito socialista. Recusava assim deixar-se aprisionar no falso dilema da época, propondo a necessidade e a urgência de uma alternativa, a não confundir com qualquer terceira via assética e inodora.

4.
O conceito de sustentabilidade emerge desse entorno crítico. Ao ser adotado pelas instâncias oficiais (Nações Unidas, Estados, governos), foi-se pouco a pouco esbotenando, perdendo o gume, tornando-se até certo ponto pau para toda a colher, sendo usado a torto e a direito nos mais díspares contextos, e até exibido por atores económicos, sociais e políticos para justificar intervenções que vão ao arrepio de qualquer real sustentabilidade. Apesar disso, o conceito continua a ter alguma utilidade, desde que utilizado na sua aceção «forte» e cuidadosamente destrinçado das suas contrafações. No sentido forte, a sustentabilidade (que remete para a perenidade dos recursos, dos ecossistemas, dos processos naturais) não é um elemento equilátero da célebre tríade (sustentabilidade ambiental, económica, social), mas, antes, o elemento ambiental é a raiz de onde promanam uma economia e uma sociedade a construir, que terão que ser muito diferentes da atual economia de rapina e pilhagem, economia de guerra e de morte, e sociedade espartilhada entre a mais lancinante miséria (vejam-se os dramas da fome e dos refugiados) e a mais frívola espetacularidade.

5.
Não quer isso dizer que não haja tendências económicas parcelares positivas, e empresas que procuram honestamente alguma forma de sustentabilidade coerente. No entanto, estamos ainda longe de uma indústria e de uma economia, tal como existem, que tenham deixado de ser a causa principal da crise ambiental global. Aqui há também que não confundir as intenções (ora piedosas ora hipócritas) e a realidade. No nosso próprio país, temos assistido a fantasiosas intervenções supostamente respeitadoras do ambiente e da natureza que de facto constituem enormes agressões e destruições, em grande parte irrecuperáveis. A cada um pode ocorrer facilmente um ou dois exemplos eloquentes, que me dispenso de especificar.

6.
Na vertente positiva, a economia circular e o desperdício zero ou mesmo o lixo zero são excelentes coisas, e há meritórias experiências, tentativas e mesmo realizações nesse domínio. Mas estamos ainda longe de atingir alguns marcos fundamentais. O recente exemplo das descargas no rio Tejo (fenómeno aliás frequente um pouco por toda a nossa rede hidrográfica) mostra bem a vulnerabilidade reinante. E é até surpreendente que ainda se encarem com naturalidade, num domínio como a qualidade das águas no qual a circularidade deveria ser estrita, que se possam continuar a fazer dos rios destino de tais descargas, com o pressuposto — que a experiência mostra ser falso — segundo o qual o tratamento das águas residuais de per si as torna inócuas e prontas a voltar a servir como se entretanto nada lhes tivesse acontecido.

7.
A situação dos oceanos é um exemplo de como continuamos longe, em terra, de uma civilização sustentável. Quanto a Portugal, a moda e o alvoroço em torno da nossa extensa costa e águas territoriais, com aspetos inegavelmente positivos, esconde sobretudo a avidez de generalizar em ambiente marinho os métodos predatórios que predominam na atividade industrial terrestre. Fazer dos fundos marinhos um eldorado de exploração mineira é apenas o aspeto mais tenebroso dessas tendências. Claro que, nesse contexto, a biodiversidade marinha será a primeira vítima, a juntar à situação já existente nas águas superficiais e intermédias, e que colocou os recursos pesqueiros na vulnerável situação em que se encontram.

8.
Quanto às alterações climáticas, pouco se pode dizer: o que a mão direita afirma, a esquerda nega. Afirmam-se objetivos como os do Acordo de Paris. Na realidade, continua-se a subsidiar pesadamente os combustíveis fósseis, a incentivar a exploração petrolífera, a admitir mesmo, e mesmo no nosso exíguo e maltratado território, a forma mais violenta de exploração de recursos, a fraturação hidráulica, e sua contraparte, a mineração a céu aberto com a devastação de grandes extensões do solo e do coberto vegetal.

9.
Cabe aqui, no âmbito da questão climática, recuperar brevemente o tema da indústria. Enquanto a base energética da indústria for aquela que hoje ainda impera, toda a sustentabilidade e circularidade serão largamente ilusórias. Não é possível desenvolvimento sustentável quando a sua base energética é insustentável — e devastadora.

10.
Para terminar, evoco algumas possíveis pistas e sugestões para a superação do statu quo
– ir além da ideia de sustentabilidade, integrando-a no entanto no que ela possa ter de melhor; a sustentabilidade deve desembocar, a nível local e a nível mundial, na regeneração dos ecossistemas próximos e planetários; é esta a proposta do urbanista e ambientalista inglês Herbert Girardet, no seu livro Criar Cidades Regeneradoras (que sintomaticamente sucedeu ao precedente Criar Cidades Sustentáveis)
– colocar como farol da ação a Ética da Terra de Aldo Leopold, no seu célebre A Sand County Almanac, editado em português com o título Pensar Como Uma Montanha;
– revisitar o pensamento de Ivan Illich, uma estimulante crítica da sociedade industrial moderna, incluindo nos seus aspetos tecnológicos, económicos, educacionais, médicos e energéticos, de que o seu pequeno livro Para Uma História das Necessidades oferece uma síntese elucidativa
– ousar pôr em causa o próprio conceito vulgar de desenvolvimento como o faz o biólogo e escritor luso-moçambicano Mia Couto no seu texto «Melhorar muito mal» (ver Ganhar a vida objetivo 7 garantir a sustentabilidade ambiental, editado em 2009 pelo IPAD – Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento)
– meditar as cinco ideias e interrogações para uma mudança, do filósofo norueguês Arne Naess incluídas na mesma publicação do IPAD: 1 – o ecólogo de terreno adquire um respeito profundo, mesmo veneração, pelos diferentes processos e formas de vida; 2 – o  PIB – Produto Interno Bruto favorece os desejos não as necessidades sem lugar para a distinção entre lixo e luxo; 3 – mais do que uma ciência, a economia torna-se uma espécie de religião do crescimento e do desenvolvimento; 4 – poderão os habitantes dos países pobres viver da mesma maneira que os países ricos? 5 – não será o excesso de uma população com elevados padrões de consumo que põe a Terra em perigo? Concluímos com uma síntese interpretativa do seu pensamento: só identificando-nos com a realidade total, com as comunidades humanas e não humanas, poderá a humanidade deixar de ser uma força de agressão à Terra, à Realidade – e, no mesmo lance, encontrar soluções aos problemas que a atormentam: alterações climáticas, poluição, pobreza, fome, guerra. 

Nota: esta versão revista difere da que foi lida na Conferência, para além de correção de pequenos lapsos e do encurtamento do parágrafo 1, em apenas, no parágrafo 2, se especificar que os objetivos de desenvolvimento do milénio deram lugar mais tarde aos objetivos de desenvolvimento sustentável, e se esclarecer o argumento da subalternidade.

* OS ECOLOGISTAS E A ENCÍCLICA LAUDATO SI
Jorge Leandro Rosa
Subtítulos da responsabilidade do e-sítio Campo Aberto

A carta inesperada – Um ecologista lê a Laudato Si’

Notícias surpreendentes
Vivemos numa época em que já não esperamos cartas. E muito menos esperamos cartas que venham dar-nos uma verdadeira novidade. Esta carta – porque uma encíclica é uma carta-circular, quer dizer, uma carta com um destinatário colectivo – trouxe notícias surpreendentes sobre a instituição mais antiga do mundo ocidental, essa igreja que muitos tendem a considerar, pelo menos no seu desenvolvimento histórico, responsável pelo fardo em formato universal (aquilo que católico significa) que os homens trouxeram ao nosso mundo.

Podemos dizer que nunca será tarde para que uma carta verdadeira e aflita seja escrita. Há muito que não víamos a Igreja aflita, pelo que não é coisa de somenos saber-se que ela ainda pode partilhar a aflição de todos os que sentem que, caso prossigamos este caminho, não será reconhecível a vida nesta Terra a breve trecho. E sublinhe-se que, aparte os tributos necessários, não há delongas inúteis no modo como a carta entra no seu tema: a uma questão urgente e grave correspondem uma abordagem vigorosa e uma franqueza de tom e propósito que nos interpelam directamente. Infelizmente, alguns dos comentários que temos lido denotam um grande embaraço, quer perante esse vigor, quer diante do próprio tema da encíclica.

A todos os seres humanos
Geralmente, embora as encíclicas dos Papas anteriores versassem temas da actualidade, faziam-no passando pela mediação da comunidade dos crentes. Pelo seu próprio tema e urgência, que modificam a própria concepção do que é actual, esta dirige-se directamente – o que é novo nessa prática epistolar – a todos os seres humanos. Ela prolonga mas também inflecte a Caritas in Veritate do seu antecessor, Bento XVI. Dizia este que a questão social se tornara uma «questão antropológica» neste início de século, questão desafiadora colocada pelas biotecnologias e pela ilusão, que as conduz, de uma autoria e de uma determinação do humano. Francisco vem prolongar essa reflexão modificando o ângulo de abordagem, que entra em domínios e perspectivas pouco frequentadas até aqui pela cúria romana, o que pode ser perturbador para alguns exegetas dos discursos papais.

Não se compreende a Laudato Si sem fazer referência a essa encíclica de 2009: a «autossuficiência humana» impede-nos de pensar a posição ilusória e perigosa em que estamos a colocar a técnica, sendo certo que estamos a dar-lhe um estatuto providencial, na esperança de que ela nos desvie do desastre ecológico. É o primeiro retrato forte que percorre esta encíclica: a ciência e a técnica são hoje intensivamente usadas pelos poderes que exploram a natureza numa escala nunca antes vista, ao mesmo tempo que dizem querer salvá-la no mesmo gesto. Como é claramente dito no §16, um dos eixos que atravessam a encíclica é «a crítica do novo paradigma e das formas de poder que derivam da tecnologia». Nesse sentido, estamos perante um texto marcadamente contracultural, quer dizer, um texto que vai a contrapelo das perspectivas dominantes, aquelas que compactuam com os poderes que capturam a vida para fins económicos e políticos.

Foto Glória Rodrigues

Foto Glória Rodrigues

Crescimento Verde ou ilusão?
E não podemos deixar de sublinhar o modo incisivo como este texto se demarca de certas proclamações, hoje muito em voga, de um «crescimento verde» (título do documento estratégico do governo português para o ambiente), quer dizer, da ideia de que o crescimento contínuo da economia mundial e a expansão do consumo de energia seriam compatíveis com a defesa da natureza. Não é essa a opção desta encíclica, sobretudo se ela é entendida como o caminho que vem «salvar» a fixação das sociedades na produção industrial. Já começámos a ver o modo como muitos, dentro e fora da igreja, tentam escamotear uma posição muito mais complexa que o texto assume claramente: «Se nalguns casos o desenvolvimento sustentável implicará novas modalidades para crescer, noutros casos – face ao crescimento ganancioso e irresponsável, que se verificou ao longo de muitas décadas – devemos pensar também em abrandar um pouco a marcha, pôr alguns limites razoáveis e até mesmo retroceder antes que seja tarde […]. Por isso, chegou a hora de aceitar um certo decréscimo do consumo em algumas partes do mundo, fornecendo recursos para que se possa crescer de forma saudável noutras partes» (§193). Estou certo de que Francisco não fala aqui da industrialização desenfreada que ocorre na China ou na Índia, por exemplo, mas antes do direito dos povos mais pobres a atingirem formas de vida dignas e humanas.

O que traz este texto? Claramente, a percepção de que o quadro antropológico da modernidade tecnológica já não chega para compreendermos os problemas que nos afligem nem as respostas que podemos dar-lhes. Dizendo-o, este Papa parece já não escrever apenas sobre a linha que liga o Homem a Deus. Há agora uma dupla linha nova que liga esses dois vértices à natureza. É nela que são escritas as novidades que o Papa Francisco nos traz. Nesta linha, o capital e a técnica aparecem como as dinâmicas responsáveis pela escravização dos seres vivos e a sua submissão ao lucro. O que fizeram a indústria e o capital pelos pobres? Aboliram a sua penúria, como no-lo haviam prometido? A resposta aparece lapidar no §27: «Já se ultrapassaram certos limites máximos de exploração do Planeta, sem termos resolvido o problema da pobreza». Esses limites foram ultrapassados nos escassos 150 anos que durou a sociedade industrial. Pouco tempo numa escala histórica mas demasiado para o planeta. Foi preciso que se dissipassem algumas das ilusões históricas que esta trouxe consigo: «Depois dum tempo de confiança irracional no progresso e nas capacidades humanas, uma parte da sociedade está a entrar numa etapa de maior consciencialização» (§19). Era tempo de vermos os cristãos chegarem claramente a esta esperança.

Naturalizar o capitalismo
Sublinhe-se também que um dos fios condutores deste texto é a sua recusa em pactuar com a actual tendência para naturalizar o capitalismo. Tendência que tem vindo a encontrar eco em alguns sectores que tentam «capitalizar» a natureza e o vivo em geral. «Os poderes económicos continuam a justificar o sistema mundial actual, onde predomina uma especulação e uma busca de receitas financeiras que tendem a ignorar todo o contexto e os efeitos sobre a dignidade humana e sobre o meio ambiente. […] Por isso, hoje, qualquer realidade que seja frágil, como o meio ambiente, fica indefesa face aos interesses do mercado divinizado, transformados em regra absoluta» (§56). Se há uma regra fiável aqui será antes aquela que Tim Garrett encontrou para o crescimento: uma medida geral da riqueza da civilização está sempre ligada por uma constante numérica à escalada do consumo de energia. Como escreveu Ivan Illich, «o impacto de quanta de energia industrialmente empacotada no ambiente social tende a degradar, exaurir e escravizar. E esses efeitos aparecem ainda antes daqueles que se manifestam como poluição do ambiente social e extinção da espécie (humana)» (Energia e equidade, 1973).

Foto Helena Azevedo

Foto Helena Azevedo

Duas dívidas: dívida ecológica, dívida para com os pobres
A Laudato Si afirma duas dívidas: uma, essencial e universal, para com os pobres, outra, inscrita na história de uma tomada de consciência, para com os ecologistas. Estes, por sua vez, também estão em dívida para com os mais pobres, já que é nos recursos e nos modos de vida tradicionais destes que muitas das soluções possíveis residem ainda.

No §51 pode ler-se uma das afirmações mais fortes desta encíclica: «Há uma verdadeira dívida ecológica, particularmente entre o Norte e o Sul, ligada a desequilíbrios comerciais com consequências no âmbito ecológico e com o uso desproporcionado dos recursos naturais que é efectuado historicamente por alguns países». Ora, esta dívida ecológica, lendo-a a partir da globalidade do documento, não é passível de ser ressarcida através de mecanismos de crescimento ou por uma mera troca de «licenças de poluir», que serão sempre fonte de agravamento da situação dos pobres: disso é exemplo o caminho desastroso das «licenças do carbono», que longe de reequilibrarem as diferenças entre os países, agravam a situação de todos. Ela só será anulada através de políticas de justiça ecológica. Essa justiça exige uma modificação dos modos de vida que os países mais ricos se habituaram a ter no último século. A dívida ecológica não é, portanto, uma dívida financeira convencional: ela não deve prolongar a sustentação monetária e comercial da exploração da natureza.

Movimento ecológico mundial
«O movimento ecológico mundial já percorreu um longo e rico caminho» (§14). Este tributo do Papa chega num momento em que décadas de presença pública da ecologia nos países ocidentais, uma presença imensamente rica, fruto de combates muito difíceis, abriu um nível de consciência colectiva notável mas, ainda assim, frustrantemente insuficiente para que se possa contrariar a aceleração da queda em declive em que estamos. Claramente, este texto surge num momento preciso e estratégico: quando a exploração dos hidrocarbonetos se expande em novas geografias e métodos; quando um discurso político-económico agressivo a favor do produtivismo se torna ainda mais absurdo nos EUA e na Europa, advogando estar aí a saída da crise mundial; quando, por fim, estamos a poucos meses da conferência de Paris sobre mudança climática, talvez a última oportunidade para uma concertação da Humanidade sobre esta questão de vida ou morte.

É a primeira encíclica na história da igreja que diz a todos que temos de agir com urgência. Se isto é teologia, é teologia da acção: em favor de acções ambientais, sociais, políticas e económicas inadiáveis. Evidentemente, acompanhadas e impulsionadas por uma tomada de consciência ética e espiritual. Como poderíamos nós, que estamos no movimento ecologista, negar a pertinência de alguma destas dimensões? A Ecologia política pode, evidentemente, não se reconhecer em todas as afirmações da encíclica, mas reconhece-as como fazendo parte, legitimamente, de uma posição ecologista.

Diagnóstico do estado do mundo
Sinal de escuta do mundo, para a redacção do texto, Francisco recorreu a especialistas, activistas e cientistas. Disso dá conta o primeiro capítulo da encíclica: descrição detalhada das grandes linhas da poluição geral do mundo, não esquecendo o contributo letal dos produtos agro-tóxicos. A abordagem do aquecimento global rompe, sem qualquer hesitação ou complacência, com o «cepticismo climático», o grande aliado político do extractivismo. A questão da água é colocada a partir da inequívoca denúncia da sua privatização, que agrava as desigualdades de acesso, assim como da crescente poluição dos lençóis freáticos. A causa maior do desaparecimento de milhares de espécies é por ele atribuída à actividade humana. E di-lo, sublinhando que a ameaça à biodiversidade, sobretudo nos seus santuários, «é transportada por propostas de internacionalização (…) que só servem os interesses económicos das corporações internacionais» (§38), uma citação do importante Documento de Aparecida. É ainda neste capítulo que Francisco afirma que «o impacto ambiental de qualquer [sublinhado meu] iniciativa económica» deve passar a ser escrutinado em todos os casos. Não é esquecida a desmesura das cidades, a privatização dos espaços, a hipocrisia das casas e das zonas vendidas como «sustentáveis». Só há sustentabilidade pela interligação e pela interdependência dos sistemas humanos, dos ecossistemas e das populações. Estes são apenas alguns exemplos de um texto que diz que temos de mudar de vida para não perder a vida. Pena é que o documento manifeste hesitações no que se refere aos organismos geneticamente modificados. Estão lá os cuidados com a manipulação da vida, mas será preciso que, também aqui, a defesa intransigente da vida por parte da igreja seja inequivocamente afirmada. Ainda assim, as consequências sociais dos transgénicos, assim como certos impactos na biodiversidade, estão bem sublinhadas: «Em muitos lugares, na sequência da introdução destas culturas [transgénicas], constata-se uma concentração de terras produtivas nas mãos de poucos, devido ao progressivo desaparecimento de pequenos produtores […]. A expansão destas culturas destrói a complexa trama dos ecossistemas, diminui a diversidade na produção e afecta o presente ou o futuro das economias regionais» (§134).

O homem domina a natureza?
O capítulo segundo, sobre as relações entre fé e ecologia, também é interessante para os ecologistas. Em primeiro lugar, reconhece que os cristãos terão às vezes interpretado a figura humana como «dominadora» sobre as outras criaturas. A encíclica tenta, aqui, trilhar um novo caminho, aquele da obrigação que o homem tem de proteger e garantir a fertilidade da terra. Ela interpela todos os seres humanos, mas parecendo que quer imitar a faculdade que um São Francisco tinha de se dirigir aos animais e às restantes partes da natureza. Essa beleza e essa mística são necessárias à protecção da natureza. Elas são também o património comum a crentes e a não-crentes.

No fundo, estas passagens do texto tentam ultrapassar a interpretação colectiva da herança bíblica que a história do Ocidente encarnou. Para que possa haver ainda um mundo para todos parece ser necessário que este mundo deixe de ser pertença dessa pequena parte da humanidade. Torna-se urgente que a figura do «herdeiro da terra» seja abolida. Contudo, para que isso aconteça será necessário que séculos de justificações político-teológicas da exploração da natureza sejam revistas criticamente. Esse trabalho não incumbe apenas aos membros das igrejas, aos crentes, mas a todos nós, que beneficiamos de um modo de vida que se desenvolveu sob o seu chapéu-de-chuva ideológico. E, no caso particular da Igreja Católica, a todos os seus membros. Francisco cita abundantemente declarações de bispos ocidentais e de outras partes do mundo que pedem essa consideração renovada da participação de todos os seres vivos na unidade da criação. Mas é recorrendo muitas vezes aos discursos das igrejas latino-americanas, tão directamente confrontadas com os crimes ambientais mais graves, que esta encíclica parece encontrar forças para uma tarefa de dimensão profética. Neste continente, as lutas pela preservação ecológica e a defesa dos pobres e da viabilidade de uma vida camponesa encontram o seu terreno mais decisivo e mais profético.

Por tudo o que aqui lê, um ecologista pode perguntar-se: teremos, finalmente, uma igreja profética, que se reconhece, não só filha de Deus, mas também filha da terra que a sustenta? Teremos finalmente um apelo decisivo para que a comunidade humana seja compatível com todas as formas de vida? Parece que há uma resposta que vai nesse sentido quando lemos que «a conversão ecológica, que se requer para criar um dinamismo de mudança duradoura, é também uma conversão comunitária» (§219). Aguardam-se os próximos sinais. Jorge Leandro Rosa

Foto Silvia Pinto

Foto Silvia Pinto

* PARA UM BANCO SOCIAL
José Ferraz Alves
Subtítulos da responsabilidade do e-sítio Campo Aberto

Este termo já tem tradução em realidades organizacionais em Portugal, mas com um sentido distinto daquele que nos surge de uma primeira leitura e que de facto deveria assumir.

Existe um Banco Social, que integra uma troca de know-how e trabalho das pessoas inscritas, como também existe um Banco de Inovação Social, com fundos para apoiar financeiramente, mas numa lógica assistencialista, projectos sociais avaliados como relevantes para sociedade.

Na esteira de Muhamad Yunus
Mas aquilo que defendo é mesmo um Banco, que seja social, isto é, uma Instituição Financeira que se organize nos moldes preconizados por Muhamad Yunus, o criador do micro-crédito, para as empresas sociais. E assumo que essas regras, impostas a uma instituição financeira, farão toda a diferença na intermediação de fundos para o financiamento da actividade económica e para os resultados que se pretendam obter.

E quais são esses princípios, ou regras, de uma empresa social, de um Banco Social?

Maximização de interesse sociais e sustentabilidade
O primeiro, que o seu objectivo é a maximização de interesses sociais e não a maximização do lucro. Os seus gestores, no cumprimento do seu contrato com os accionistas que os nomeiam, procuram que as empresas que apoiam criem emprego, tenham um saldo externo positivo, colmatem falhas de mercado, substituam importações, promovam a formação dos seus colaboradores, dinamizem a igualdade de sexos, o apoio à maternidade e paternidade, a sustentabilidade do endividamento dos seus clientes, por exemplo. O lucro é o meio para financiar os objectivos, não um fim.

Segundo, têm de desenvolver a sua actividade, para os objectivos atrás mencionados, de uma forma económico e financeiramente sustentável, isto é, sem exigir posteriores e sucessivas entradas adicionais de novos fundos para a sua capitalização e cobertura de prejuízos.

Lucros transformam-se em capital social
Terceiros, não podem distribuir dividendos, ficando os lucros retidos como capital social gerado pela sua actividade ou, alternativamente, sendo investidos em novos projectos que atinjam os objectivos atrás apresentados.

Apenas o capital inicial investido tem de ser remunerado, a uma taxa de uma aplicação sem risco mais um prémio razoável. Não tem sido referido, mas uma grande razão do elevado endividamento de muitas grandes empresas tem a ver com uma distribuição de dividendos que não é gerado pela sua actividade. Qualquer aluno de meio do curso de Economia e Gestão sabe avaliar e calcular se uma empresa deve distribuir dividendos ou se está a endividar-se para o efeito.

Gestores premiados pelo mérito

Acrescento um quarto ponto. Os gestores são premiados pelo seu mérito, previamente definido quantitativamente aos objectivos como os atrás referidos, e depois comparáveis com o realmente alcançado.

Por isso, insisto, que mais do que um Banco de Fomento, a diferença far-se-ia por um Banco Social.

Como fazer? Se os 6 mil milhões da linha da troika fossem aplicados para reduzir o sobreendividamento das famílias portuguesas, um desses objectivos sociais, para um endividamento médio de 10 mil euros, as prestações mensais das 600 mil famílias identificadas pela DECO baixariam de 450 euros para 150 euros, pagando aos Bancos Credores e libertando 2 mil milhões de euros para a economia (1,4% do PIB) e induzindo receitas adicionais de IVA de 500 a 800 milhões de euros, potenciando a procura, o investimento local e o emprego. José Ferraz Alves

 

 

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