Dendroclastia (o não respeito e a aversão às árvores) e dendrofobia (o medo e horror às árvores) terão deixado de ser pecha dos portugueses? Somos todos agora grandes amigos das árvores?
Colocado em 13 de fevereiro de 2019
Novo texto, complementar, colocado em 16 de abril de 2019:
DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DA ÁRVORE
Para prolongar uma reflexão presente na Campo Aberto desde o seu início em 2000, abrimos agora esta rubrica A ÁRVORE E A CIDADE (em complemento àquela, mais geral, Por Amor da Árvore).
Para iniciar este novo impulso, convidamos a ler e ponderar o texto que se segue, extraído de um artigo de 1959 escrito pelo grande agrónomo e silvicultor português Joaquim Vieira Natividade. Sobre o autor, deixamos, após este extrato, algumas notas.
Questões que o texto nos suscita: serão os portugueses ainda, em relação às árvores, como Natividade aponta? É inegável que em certos setores, tanto a população como alguns municípios têm hoje uma atitude mais positiva em relação à árvore na cidade. Mas é também inegável que, seis décadas depois, estamos ainda muito longe de uma atitude geral de respeito pela árvore, e há ainda um número impensável de ações destrutivas que se gostaria já não fossem admissíveis, subscritas não poucas vezes por pessoas e entidades de que se esperaria melhor… ou, pior ainda, que já nem chegam a surpreender-nos.
O que mais inquieta alguns de nós é que há hoje uma certa dendroclastia disfarçada de dendrofilia, que recorre a supostos argumentos científicos e técnicos para justificar certas destruições que talvez fossem evitáveis. Há mesmo quem invoque regras de boa gestão urbana da arborização e do arvoredo que a nosso ver são drásticas e evitáveis. Certamente que alguns daqueles a quem o ouvimos são sinceramente dendrófilos. Mas… serão essas de facto boas regras? Podem até ser bem intencionadas. Mas serão boas? Em todo o caso é de recear qualquer dogmatismo neste tema. Fica esta coluna aberta aos contributos dos leitores, seja qual for a sua opinião. Aprofundar e consolidar uma boa «política da árvore» (na expressão crítica de Jean Giono, autor do célebre livro O Homem que Plantava Árvores) nas nossas cidades, eis o fim para o qual gostaríamos de contribuir com esta rubrica.
A ÁRVORE E A CIDADE
Artigo de Joaquim Vieira Natividade
no jornal Diário Popular, Ano XVIII, n.º 6090, Lisboa, 1959
Uma das coisas que desfavoravelmente impressionam quem visita o nosso País é a incapacidade, aparente ou real, para, com inteligência e dignidade, aproveitarmos a árvore no urbanismo. Há quem fale, à boca pequena, de atávicos instintos arboricidas, o que é desprimoroso, antipático, quando não degradante e sinistro, porque pode levar a crer que, apesar de baptizados e de nos termos por bons cristãos, de todo nos não libertámos ainda dos vícios e das tendências ingénitas, da infiel moirama.
Para se contornarem os melindres, recorramos, não já ao neologismo «arborifobia»,porventura também cruel, mas a eufemismo suaves e eruditos, como a dendroclastia, para traduzir o desamor de muitos dos nossos municípios pela árvore ornamental.
Em boa verdade, por esse País fora, em tantas caricaturas de jardins a que se dá por vezes o nome de parques municipais, raro se nos depara uma árvore verdadeira, uma árvore autêntica, em todo o esplendor da majestosa arborescência: a árvore esbelta, digna, umbrosa e acolhedora, orgulho da Criação. Onde acaso existiu, poucas vezes escapou a brutais mutilações que a transformaram em grotesco Quasímodo, sem o mínimo respeito pela dignidade do mundo vegetal.
Nos jardins, em lugar da árvore, plantou- se um reles ersatz, uns arbustozitos burlescos, quase bobos arbóreos, tão inúteis que nem dão sombra a uma pessoa crescida: as tais falsas acácias de importação, maneirinhas, embonecadas, dengosas, com o ar, não de fazerem parte do jardim, mas de terem ali ido, em passeio, exibir a ramagem, com a sua «permanente»manipulada no salão de qualquer coiffeur arborícola municipal.
Compreende-se, num povo de fraca cultura, o desamor instintivo ao marmeleiro e ao castanheiro, árvores estas consideradas, desde remotos tempos, estimáveis ferramentas de educação e esteio dessa vida patriarcal, austera e digna, que os velhos, ao olharem o que vai pelo Mundo, recordam com saudade e respeitoso enlevo. Já se não compreende, todavia, que se mutilem ou suprimam sem piedade o ulmeiro, o plátano, o umbroso freixo, o álamo esbelto, os nobres e austeros ciprestes, os cedros, os carvalhos e tantos outros soberbos gigantes vegetais que, estranhos, embora, muitos deles à nossa flora, encontraram na Lusitânia como que a sua segunda pátria.
Num país castigado por uma ardente canícula, dir-se-ia que temos horror à sombra; onde se pediam arvoredos frondosos e acolhedores, o ninho de um oásis a suavizar as inclemências do estio, fizemos terreiros imensos, cruamente ensoalheirados e inóspitos; quando tantos dos nossos monumentos lucrariam com uma nobre moldura vegetal que acarinhasse e aquecesse essa frieza da pedra ou por vezes quebrasse, com a cortina da folhagem, a monotonia das grandes massas arquitetónicas, e num ou noutro caso escondesse até a sua real pobreza; quando a presença da árvore exaltaria o poder evocador e o poético encanto que emana de tantas ruínas, como acontece aos templos perdidos nos bosques sagrados da Grécia – nós, pela calada, metodicamente, cinicamente, fomos degolando, mutilando, rapando tudo o que tivesse jeito de árvore para não prejudicar as «vistas», tal como faria qualquer ricaço de letras gordas aos empecilhos que ofuscassem ou escondessem os arrebiques pelintras do seu chalet.
O que haveria a dizer sobre as grandezas e as misérias da árvore nas cidades e nas vilas de Portugal!
Notas breves
O extrato do artigo de Joaquim Vieira Natividade datado de 1959 foi republicado, por visão e rasgo do então Secretário de Estado do Ambiente do I Governo Constitucional, Manuel Gomes Guerreiro, em 1976 no livro O Culto da Natureza, que inaugurou a série O Ambiente e o Homem, edição da mencionada Secretaria de Estado do Ambiente.
O livro consta de quatro artigos e pequenos ensaios que mantêm toda a atualidade e fazem de Joaquim Vieira Natividade um dos pioneiros indiscutíveis do moderno sentimento da Natureza em Portugal, que não apenas exalta a sua força e majestade mas está consciente também da sua fragilidade perante os ataques suicidas que as sociedades humanas lhe desferem. O Professor Manuel Gomes Guerreiro, que viria depois a ser o primeiro Reitor e efetivo inspirador e fundador da Universidade do Algarve, e ele próprio grande silvicultor, ciente do estado primitivo da opinião das classes dirigentes portuguesas em matéria de ecologia e ambiente, preocupou-se expressamente, como testemunha a referida coleção de livros, antes de mais em ilustrar a opinião e torná-la capaz de distinguir o trigo do joio no que se refere ao chamado «desenvolvimento» e em identificar na destruição da natureza não um sinal de progresso mas pelo contrário um sinal de incultura e empobrecimento. Aliás, nas suas Palavras Prévias, Manuel Gomes Guerreiro faz uma síntese brilhante do estado da Humanidade perante a realidade já então evidente, e que vem constantemente a agravar-se, e que resume na expressão, que colheu no autor J. Osborne, «a Terra está a saque».
Joaquim Vieira Natividade, alcance
Alguns passos desse prefácio revelam a admiração de Manuel Gomes Guerreiro por Vieira Natividade e esclarecem o alcance da sua obra:
[Nesses textos] o grande agrónomo e silvicultor, no seu claro e insinuante estilo, discorre sobre o culto da Natureza, a árvore da cidade e o mundo de beleza vegetal que garante a Vida na Terra. Parece-nos que como exemplo de boa divulgação de temas que por vezes são tratados de forma árida e desgraciosa, dificilmente se poderia encontrar melhor.
Natividade foi um grande investigador, um dos maiores senão o maior no domínio das ciências agroflorestais em Portugal, especialmente dedicado à fruticultura e à subericultura. Nestes setores deixou uma obra, quer executada quer escrita, ímpar na vida nacional. Senhor de uma inteligência arguta, orientada por um espírito sensível, herdou, por intermédio de seu pai, Manuel Vieira Natividade, um rico património cultural legado pelos monges de Cister, cuja presença ainda hoje se pressente em Alcobaça.
Vida e Obra
Joaquim Vieira Natividade (1899-1968) nasceu e morreu em Alcobaça. Diplomou-se como engenheiro agrónomo em 1922 e como engenheiro silvicultor em 1929 no Instituto Superior de Agronomia, em Lisboa, onde teve por mestres Mário de Azevedo Gomes e António Xavier Pereira Coutinho. Especializou-se em genética e citologia em Londres e em Coimbra. Fundou e dirigiu o Departamento de Pomologia da Estação Agronómica Nacional, o Centro Nacional de Estudos e Fomento da Fruticultura e a Estação de Experimentação Florestal. Em 1936 foi nomeado representante dos Serviços Florestais na Junta Nacional da Cortiça. Tornou-se especialista na cultura do sobreiro e autor da obra de referência de nomeada internacional, Subericultura, de 1950. Para informações mais circunstanciadas: Joaquim Vieira Natividade 1899-1968: ciência e política do sobreiro e da cortiça, de Ignacio García Pereda, Lisboa 2008, edição Euronatura.
DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DA ÁRVORE
Em 5 de abril de 2019, nos locais da Assembleia Nacional de França (mas não na assembleia propriamente dita, não é pois um ato do órgão legislativo do país mas sim uma iniciativa de associações da sociedade civil expressa nesse recinto), foi proclamada, no âmbito do progressivo maior reconhecimento dos direitos dos seres vivos no planeta, uma Declaração dos Direitos da Árvore. Os artigos da declaração não têm força coerciva, mas, segundo os autores, ela «tem por vocação alterar a maneira de ver e o comportamento dos humanos, fazer-lhes tomar consciência do papel determinante das árvores no quotidiano e quanto ao futuro, abrindo caminho a uma alteração rápida da legislação a nível nacional».
Ou seja, poderá vir a acontecer, e isso também em Portugal, o que aconteceu com o estatuto jurídico dos animais. Originariamente, e até há muito pouco tempo, considerados como coisas, ganharam outra dimensão jurídica, deixando de ser simples objetos, o que garante a base jurídica para sancionar e desencorajar os maus tratos. O mesmo pode vir a acontecer com as árvores, que são ainda sujeitas a tratamentos que devem ser erradicados dos hábitos sociais, por meio do reconhecimento do seu estatuto de sujeitos de direitos, mesmo que numa aceção não exatamente igual àquela que se aplica aos seres humanos. Digamos que, na impossibilidade de que as próprias árvores o façam, esses direitos são assumidos através dos humanos e tendo os humanos por intérpretes, como se fossem eles próprios árvores.
O impacto desta perspetiva pode barrar o caminho a constantes atropelos feitos às árvores no nosso país, mesmo por vezes por alguns que se assumem seus amigos. No que se refere ao papel económico das árvores, como aponta o artigo 5.º desta declaração, ele pode ser explorado pelos humanos, revestindo-se essa exploração o mais possível do espírito da Declaração, do que certamente resultariam benefícios para as árvores e para os seres humanos.
Eis os cinco artigos da Declaração:
Artigo 1.º
A árvore é um ser vivo fixo que, em proporções comparáveis, ocupa dois meios distintos, a atmosfera e o solo. No solo desenvovem-se as raízes, que captam a água e os minerais. Na atmosfera cresce a copa e a folhagem, que capta o dióxido de carbono e a energia solar. Devido a essa situação, a árvore desempenha um papel fundamental no equilíbrio ecológico do planeta.
Artigo 2.º
A árvore, ser vivo sensível às modificações do seu ambiente, deve ser respeitada enquanto tal, e não pode ser reduzida a simples objeto. Tem direito ao espaço aéreo e subterrâneo que lhe é necessário para realizar o seu crescimento completo e atingir as suas dimensões de adulto. Sendo assim, a árvore tem direito ao respeito da sua integridade física, aérea (ramos, troncos e folhagem) e subterrânea (rede radicular). A alteração desses órgãos debilita-a gravemente, o mesmo acontecendo com a utilização de pesticidas e outras substâncias tóxicas.
Artigo 3.º
A árvore é um organismo vivo cuja longevidade média ultrapassa de longe a do ser humano. Ela deve ser respeitada ao longo da sua vida, com direito a desenvolver-se e reproduzir-se livremente, desde o nascimento à sua morte natural, seja árvore das cidades ou dos campos. A árvore deve ser considerada como sujeito de direitos, incluindo face às regras que regem a propriedade humana.
Artigo 4.º
Certas árvores, consideradas notáveis pelos seres humanos devido à sua idade, aspeto ou história, merecem uma atenção suplementar. Ao tornarem-se património biocultural comum, elas acedem a um estatuto superior que obriga os humanos a protegerem-nas como «monumentos naturais». Elas podem ser inscritas numa zona de preservação do património paisagístico, beneficiando assim de uma proteção reforçada e de uma maior apreciação por motivos de ordem estética, histórica ou cultural.
Artigo 5.º
Para responder às necessidades dos humanos, certas árvores são plantadas e depois exploradas, escapando forçosamente aos critérios anteriormente citados. As modalidades de exploração das árvores florestais ou rurais devem no entanto ter em conta o ciclo de vida das árvores, as capacidades de renovação natural, os equilíbrios ecológicos e a biodiversidade.
Gostei…Não conhecia Joaquim Vieira Natividade…
Foi contemporâneo do meu Avô
Conheci o Vieira Natividade numa visita que fizemos, o meu pai que era grande amigo dele e eu, em 1957 a Alcobaça. E lembro-me perfeitamente do livro Subericultura que tínhamos em nossa casa em Lourenço Marques (atual Maputo) com uma bela dedicatória. Tenho ótimas memórias desses tempos.