COMO REENCONTRAR CIDADES QUE POSSAMOS AMAR?
Colocado em 12 de novembro de 2019
Em complemento e extensão da tertúlia de 13 de novembro de 2019 promovida pela Campo Aberto, com introdução e animação pelo Arq. Fernando Magalhães, inserimos adiante alguns elementos de reflexão.
O primeiro comporta o final de um artigo escrito e publicado em 1973 na revista Le Sauvage (uma influente revista da fase inicial do surgimento do movimento ecológico em França). O autor é o pensador, sociólogo e filósofo André Gorz, que igualmente teve papel pioneiro no pensamento ecológico com o pseudónimo Michel Bosquet. Nesse trecho, faz alusão a Ivan Illich, pensador seu contemporâneo, cujo livro Para uma história das necessidades, em edição portuguesa recente, pode ser encontrado na biblioteca da Campo Aberto e se encontra também à venda na sede.
Esse trecho é uma adaptação da versão brasileira. O texto dessa versão na íntegra pode ser encontrado aqui.
A IDEOLOGIA SOCIAL DO CARRO A MOTOR
André Gorz (últimos parágrafos)
A verdade é que ninguém tem realmente qualquer escolha. Você não é livre para ter um carro ou não porque o mundo dos quarteirões das cidades é projetado em função do carro – e, cada vez mais, é assim o mundo da cidade. É por isso que a solução revolucionária ideal, que é afastar o carro em proveito da bicicleta, do autocarro e do elétrico coletivo, não é sequer já aplicável em cidades grandes como Los Angeles, Detroit, Houston, Trappes, ou Bruxelas, que são construídas por e para o automóvel. Estas cidades estilhaçadas são formadas por alinhadas ruas vazias de desenvolvimentos idênticos; e a sua paisagem urbana (um deserto) diz, «estas ruas são feitas para se conduzir tão rapidamente quanto possível do trabalho para casa e vice-versa. Você anda através daqui, você não vive aqui. No fim do dia de trabalho todos devem permanecer em casa, e qualquer um encontrado na rua depois do anoitecer deve ser considerado suspeito de «fazer o mal». Em algumas cidades americanas o ato de dar uma volta pelas ruas à noite é visto como suspeita de crime.
Então estamos condenados? Não, mas a alternativa ao carro terá que ser abrangente. Para que as pessoas possam abandonar os seus carros, não será suficiente oferecer-lhes um transporte de massa mais confortável. Terão que poder dispensar o transporte por se sentirem em casa nos seus bairros, nos seus quarteirões, nas suas comunidades, nas suas cidades de tamanho humano, e por sentirem prazer em andar do trabalho para casa a pé, ou se preciso for, de bicicleta. Nenhum meio de transporte e fuga veloz jamais compensará a humilhação de viver numa cidade inabitável na qual ninguém se sente em casa, ou a irritação de somente ir à cidade para trabalhar ou, por outro lado, de estar sozinho e dormir.
«As pessoas», escreve Ivan Illich, «quebrarão as correntes do domínio do transporte quando voltarem a amar, como se fosse seu, o próprio território, o seu próprio ritmo particular, e temerem ficar demasiado distante dele». Mas a fim de amar «o seu território», ele deve antes de mais nada ser habitável, e não congestionável. O bairro ou a comunidade devem novamente transformar-se num microcosmo esculpido por e para todas as atividades humanas, onde as pessoas possam trabalhar, viver, relaxar, aprender, comunicar entre si, e discutir sobre ela, e quel elas controlem conjuntamente como o lugar da sua vida em comum. (…)
Estas novas cidades [que teremos que construir] poderiam ser federações de comunidades (ou de bairros) cercadas por cinturões verdes nos quais cidadãos – e em especial crianças em idade escolar – passariam diversas horas da semana cultivando os alimentos frescos de que necessitam. Para se locomoverem todos os dias poderiam usar todos os tipos do transporte adaptados a uma cidade de tamanho médio: bicicletas, elétricos coletivos municipais, táxis elétricos sem motoristas. Para longas viagens no país, assim como para convidados, uma certa quantidade de automóveis municipais estaria disponível em garagens do bairro. O carro não seria já uma necessidade. Tudo teria mudado: o mundo, a vida, as pessoas. E isto não virá por si só.
Entretanto, o que deve ser feito para se chegar lá? Sobretudo, nunca faça do transporte um assunto em si mesmo. Conecte-o sempre ao problema da cidade, da divisão social do trabalho, e à maneira como isto compartimentaliza as muitas dimensões da vida. Um lugar para o trabalho, outro para «viver», um terceiro para as compras, um quarto para aprender, um quinto para entretenimento. A maneira como o nosso espaço é planeado dá continuidade à desintegração das pessoas que começa com a divisão de trabalho na fábrica. Corta uma pessoa em fatias, corta o nosso tempo, a nossa vida, em fatias separadas de modo que em cada uma você seja um consumidor passivo à mercê dos comerciantes, de modo que nunca lhe ocorra que o trabalho, a cultura, a comunicação, o prazer, a satisfação das necessidades, e a vida pessoal podem e deveriam ser uma e mesma coisa: uma vida unificada, sustentada pelo tecido social da comunidade.
Le Sauvage, Setembro-Outubro de 1973
EXTRATO DE «PORTO COM NORTE»
Plataforma proposta publicamente em 2018
Parágrafos iniciais
Na génese do automóvel não esteve presente o seu uso coletivo. Ao contrário do eletrodoméstico, ou da bicicleta, que retêm um valor de uso quando todos lhe têm acesso, o automóvel, tornou-se apetecível enquanto objeto estatutário e gerou fantasias e exclusividades que com o decorrer do tempo se frustraram. Democratizar o transporte nunca significou, poder dispor de um automóvel particular para cada família, nem mesmo com zero emissões.
Também não está legitimado que seja encargo de qualquer governação permitir as condições para estacionar convenientemente onde convenha. Da mesma forma, não será possível garantir que se possa conduzir sempre, de forma fluida na cidade, nem às velocidades regulamentadas. A perpetuação do seu uso sustenta a ilusão de que cada um pode procurar o seu próprio benefício à custa dos direitos de todos e o automobilista interioriza os restantes utentes da via como obstáculos físicos à progressão do seu veículo.
O automóvel, só do ponto de vista das emissões, do ruído e da segurança é que tem sido reconhecido como nocivo e antissocial. Tida como um «fenómeno de desenvolvimento», a pressão motorizada marcou as opções de organização rodoviária e da mobilidade urbana durante décadas. A sinistralidade rodoviária não pode ser o preço a pagar por esse fenómeno, como se fosse uma inevitabilidade. A perpetuação do uso do automóvel privado, independentemente da fonte energética da sua propulsão é a submissão a uma ideologia insustentável ao nível da vida urbana diária.
A desvalorização do automóvel em razão das consequências do seu uso indevido não foi seguida de uma desvalorização social e ideológica em razão do atravancamento que gera. O mito do prazer e benefício do carro individual persiste. Embora o transporte coletivo tenha vindo a ser ideologicamente valorizado, como o comprova a criação do Metro do Porto há uma década, este tem sido generalizadamente alvo de desinvestimento em Portugal, patente nomeadamente no grau de insatisfação proporcionado pela STCP, e pelas empresas privadas de transporte rodoviário.
O deficiente ou inexistente planeamento urbanístico metropolitano, a completa ausência de articulação intermunicipal, institucional, regional e nacional, bem como a voracidade do mercado imobiliário, transferiram de tal maneira para o automóvel o exercício de funções de transporte, que a sua propagação tem sido uma inevitabilidade.
Só mais recentemente é suscitado um outro problema; o do espaço urbano público que utiliza, o qual, é escasso e finito. O excesso de automóveis restringe os direitos de uso de todos os que utilizam as vias rodoviárias, incluindo o transporte público. Perde-se o valor de uso do automóvel, quando todos exigem usar os seus veículos próprios, consumidores de um espaço. Mesmo sendo possível imputar aos proprietários dos veículos, os impostos e os custos da criação e gestão da infraestrutura pública, concessionada ou privada, usada para circular e estacionar, está em causa um excesso de afetação do espaço e um défice de exercício democrático na atribuição desse espaço com vista ao seu melhor uso coletivo.
A desejada independência individual motorizada, radica atualmente numa insidiosa e crescente teia de dependências. Desde o combustível à manutenção, os seguros, o fisco, as inspeções periódicas obrigatórias (para limitar os cerca de 5% de acidentes por falha mecânica) e mais recentemente os meios digitais que pretendem controlar todas as pessoas e todos dos veículos de todas as formas. Não se controlam, porém, de forma suficientemente ativa, os comportamentos dos automobilistas, dos quais decorrem 95% dos acidentes.
A reivindicação da liberdade de utilizar o veículo próprio, faz com que a média da velocidade caia abaixo da velocidade de uma bicicleta, em percursos urbanos que rondem os 5Km de extensão, e que por si, constituem 60% das deslocações. A velocidade à qual os veículos podem sair e entrar na cidade não pode ser maior do que já é. Para facilitar o trânsito dentro da cidade, a via rápida perimetral não portajada, a VCI, seria a solução endógena da Cidade, não fosse ela própria uma fonte de acidentes, de ruído e contaminação que se estende para além do território que ocupa. À medida que foi incrementado o número dos veículos motorizados foi também incrementada a capacidade de os estacionar. À medida que a cidade se aproxima da saturação, mais tempo se perde em deslocações.
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