SOBRE A REVISTA LEONORANA N.º 3 CLIMATES/CLIMAS
Colocado em 5 de fevereiro de 2020
Sempre amei as revistas que pensam, desenham, exprimem e tacteiam o mundo. A diversidade do escopo e ambição destas é quase infinita, o que faz delas um campo impossível de unificar. Estas revistas estão muito longe do universo ressequido das revistas académicas e não se confundem com as «revistas culturais» que se dedicam a um domínio específico da cultura ou a uma concepção respeitável desta. Uma das piores coisas que aconteceram às revistas foi terem ficado sediadas (ou será sedadas?) em estruturas profissionais, como as universidades, as fundações ou as empresas, que querem sempre restringir o jogo das passagens que elas podem abrir. A letargia das paixões é o outro nome das políticas culturais das instituições.
A Leonorana é uma dessas revistas que abrem o jogo. Uma das poucas que sobrevivem em Portugal. Mais do que um programa, transporta uma sensibilidade, um ar seu, um «não sei quê». Participei em algumas e encontrei agora esta, já no seu terceiro número, por me terem convidado a participar no lançamento do número, que decorreu [em 29 de janeiro 2020] na Campo Aberto.
Este número da Leonorana é dedicado ao tema «climates/climas». Como os organizadores da sessão me conhecem a partir da minha intervenção pública sobre as «alterações climáticas» (um pleonasmo, não é verdade?), pensaram talvez que eu teria algo a dizer. E julgo que tenho. Desde logo, que não podemos falar apenas de clima nos registos da crítica, do activismo e da ciência quando falamos de alterações climáticas. E eu, note-se, tento falar, na medida do que sei, dentro destes códigos. Mas como as questões climáticas nos põem hoje diante de questões existenciais (já repararam como um certo uso do «existencial» está de regresso?), precisamos também de outros registos. Precisamos de ter uma conversa que passe pela análise (em sentido psicanalítico, mas não só), pela expressão artística e literária, pela leitura simbólica dos acontecimentos, pelas culturas (ainda além da antropologia), pelo corpo, etc. Precisamos de tudo isto e de muito mais para sairmos dos confinamentos que nos trouxeram até aqui.
Dos muitos artigos interessantes deste número (da cultura japonesa ao «wild living» em perspectiva norueguesa), dois prenderam a minha atenção, embora só tenhamos conversado, “hélas”, sobre um deles: o texto de Catarina Rosendo sobre o «Desassossego Climático» e o de Isabel Carvalho sobre a Buganvília. Aquele da Catarina dá espaço ao sublime estético, que me parece uma questão essencial para a nossa sensibilidade ameaçada climaticamente. Não são as alterações climáticas, citando Jean-Luc Nancy, «uma questão do movimento do ilimitado, do que tem lugar na borda do limite» e, consequentemente, na borda da re-presentação? Tentei propor, na nossa breve conversa, uma reintrodução do sublime a partir da desfiguração da posição do humano em pleno decurso.
Por seu lado, «Um baré», da Isabel Carvalho, dá espaço às metáforas climáticas cunhadas por Diderot a partir do relato de viagem de Bougainville (trata-se, claro, do «suplemento à viagem de Boungainville», de que agora me lembrei a partir dos meus tempos de literatura francesa com Costa Ideias na FLUL), abrindo aí uma interrogação em torno da «unidade metamorfoseante» que o singular materialismo de Diderot (e do século XVIII) nos propõe ainda hoje. Do século XVIII ainda falei, mas na sua vertente alemã, porque necessitamos de encontrar correspondências com um pensamento em arco que pense a diversidade dos seres e dos seus estados. E poderia ter-me lembrado da proposta vegetal de Emanuele Coccia (que traduzi: A Vida das Plantas, edição Documenta) e da sua metafísica da mistura.
Deixei à editora e colaboradoras presentes um convite para uma sessão na Livraria Gato Vadio sobre estas práticas editoriais e estas atmosferas do mundo, as suas anatomias entre sujeito e ambiente, as suas imersões, que tantos hoje ignoram porque lhes falta a cultura delas.
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