Que Cidade Queremos? Tribuna Aberta (3)

por | Set 16, 2020 | sem categoria | 3 Comentários

Esta  rubrica Tribuna  Aberta (3) prossegue a primeira com este título, Que Cidade Queremos – Tribuna Aberta (1), que contém sete artigos. E a segunda, Que Cidade Queremos – Tribuna Aberta (2) com oito artigos.

Recordam-se, na primeira  Tribuna Aberta, os objetivos destas Tribunas Abertas.

Os artigos desta rubrica Tribuna Aberta são da exclusiva responsabilidade dos seus autores e em nada comprometem a posição oficial da associação, quer esses autores sejam ou não sócios da Campo Aberto, membros ou não dos seus órgãos sociais.

Sobre as ilustrações: não têm obrigatoriamente relação direta com o artigo em que se situam, mas uma relação indireta, simbólica.

Seguem-se os novos artigos:

23 Uma moratória para as gerações futuras – direito a recuperar os ecossistemas da cidade

22 Solos Livres – um direito das  gerações futuras

21 Cidade à medida das pessoas princípio orientador para a mobilidade

20 Planear o território urbano tendo em mente os direitos das gerações futuras

19 Território urbano e proteção do comércio tradicional e de proximidade

18 Onde cabem na cidade  as novas hortas e jardins?

17 Manifesto: Porto, Cidade Pedonal

16 Como construir a cidade que queremos ter? Juntos!

 

Bicicletas a perder de vista. Utrecht. Foto Ana Poças.


16  Que Cidade Queremos
Colocado em 17-09-2020

COMO CONSTRUIR A CIDADE QUE QUEREMOS? JUNTOS!
Ana Poças

 

Depois de quase dez anos a viver na Holanda, mudei-me de volta para Vila Nova de Gaia, no início deste ano. Sinto-me uma felizarda a muitos níveis, a normalidade de um céu azul, a terceira dimensão que permite ver mar e serras ao longe, a longa estação e diversidade das frutas nacionais…

Choque cultural… urbano
Ao nível do planeamento urbano, no entanto, estou a enfrentar um choque cultural. Lá usava a bicicleta no dia-a-dia, sentindo-me sempre em segurança. Quando caminhava pela cidade nunca me sentia em perigo de ser atingida por um carro em excesso de velocidade que se despistasse numa rua sem passeios. As zonas industriais não estavam espalhadas pelo meio das cidades (como em Gaia) mas em zonas bem definidas da periferia. Há razões históricas, geográficas e administrativas que explicam parte destas diferenças.

Mas sobretudo é importante lembrar que a Holanda não nasceu assim. Houve nos anos setenta movimentos de cidadãos contra a dominância dos carros nas cidades, motivados também pelo elevado número de atropelamentos (como mostra o vídeo). E quando os departamentos de urbanismo começaram a desenhar ciclovias em todo o lado houve protestos e revolta de alguns negócios locais e moradores, pela inconveniência, e por acharem que iam ter menos clientes se as ruas tivessem menos lugares de estacionamento. Hoje em dia penso que ninguém voltaria atrás. Como noutras conquistas sociais, o que se conseguiu foi à custa do esforço coletivo de movimentos de pessoas.

Uma cidade para gostar de viver
Em que cidade gostaria de viver? Numa cidade em que a mobilidade não estivesse dependente do automóvel. Onde todos tivessem espaços verdes para usufruir perto de casa. Em que a habitação fosse accessível. Em que as desigualdades fossem ativamente combatidas. Numa cidade que se dedicasse a uma economia de proximidade e solidariedade, e tivesse como visão a minimização dos impactos ambientais e a resiliência às alterações climáticas.

Neste espaço de tribuna da Campo Aberto tenho lido com interesse e concordância as contribuições que têm sido feitas. Para além de contribuir para o PDM do Porto com propostas escritas, como é que podemos assegurar que estas ideias são postas em prática, no Porto e noutras cidades?

Fazer campanhas, quem alinha?
Podíamos fazer campanhas para diferentes temas, por exemplo: mobilidade saudável e sustentável, direito à natureza e à alimentação, direito à habitação, economia de proximidade/solidariedade, resiliência ambiental e energética. Para cada campanha é preciso trabalhar com as outras organizações e grupos alinhados existentes na mobilização de pessoas, mostrando o interesse público nestas soluções, e exercendo pressão para a sua adoção.

Se há algo que me impressionou na Holanda foi o pragmatismo com que as pessoas se juntam para trabalhar em causas comuns para o benefício de todos. Se há algo que gostaria de experienciar em Portugal, seria esse trabalho de conciliação e ativação de cidadãos, ativistas e associações para, com mais força, criarmos o impulso necessário à construção de cidades mais saudáveis e mais justas. Quem se quer juntar? ❑

 

Sem medo à neve. Utrecht. Foto Ana Poças.

 

BICICLETAS E CICLOVIAS
Comentário de Dalila Pinto
Colocado em 24-09-2020

Para construirem ciclovias estão a abater árvores em várias cidades deste bendito país! Em Braga já abateram dezenas e não sei se já terminou o massacre!

Entretanto li que começaram também a abater árvores em Espinho por causa da construção duma ciclovia!
Claro que as bicicletas e as ciclovias não têm culpa dos desmandos de quem manda mas servem de pretexto para cortar árvores  e os benefícios  da promoção de uma mobilidade mais amiga do ambiente  perdem-se. Não haverá maneira de civilizar estes autarcas?

 

17  Que Cidade Queremos
Colocado em 27-09-2020

MANIFESTO: PORTO, CIDADE PEDONAL
Sílvia Belo

O «nosso» conceito de cidade pedonal
No contexto urbano atual, um pouco por todo o lado, o peão é uma figura acossada, geralmente menorizada no grande esquema da circulação urbana. É por querermos sair dessa lógica que apresentamos este manifesto a favor de um peão entendido como elemento central neste esquema.Este manifesto aborda a pedonalidade – vulgo, «andar a pé» – como uma forma de deslocação quotidiana na cidade, abrangendo, geralmente, pequenas e médias distâncias. Em cidades de média dimensão, como o Porto, ela permite cobrir muitas das deslocações regulares da população. Num Porto despoluído, arborizado e com vias pedonais satisfatórias, a grande maioria dos trajetos poderia ser feita a pé com prazer e sem requerer um esforço excessivo ao cidadão médio. Para isso, é preciso criar condições de deslocação favoráveis que permitam transformar uma cultura urbana de muitas décadas, habituada a ver as deslocações pedonais como dependentes ou acessórias das outras formas de deslocação.

Distorção percetiva
Os nossos hábitos pedonais são vítimas de uma distorção percetiva, quer no que se refere ao esforço requerido quer aos tempos de deslocação, uma vez que o transporte motorizado é geralmente visto como o mais confortável e o mais rápido. Na verdade, a ausência de hábitos pedestres leva-nos a não tomar em conta os dispêndios de esforço psicofísico e de tempo que os transportes motorizados envolvem, quer sejam os públicos ou, sobretudo, os privados. Perde-se, frequentemente, mais tempo à espera dos transportes públicos ou na circulação rodoviária em vias muito congestionadas (fenómeno recorrente, dada a duração crescente das chamadas «horas de ponta» citadinas) do que na deslocação a pé no mesmo percurso. (Já todos pudemos vivenciar ou testemunhar situações em que o grau de congestionamento atinge um grau tal que, caso saíssemos do automóvel – ou do autocarro – e fizéssemos o percurso a pé, este não só se efetuaria mais rapidamente, como propiciaria uma sensação de bem-estar e liberdade associada ao facto de deixarmos um veículo no qual nos sentíamos encurralados.)Queremos sublinhar que a «pedonalidade» é aqui entendida como forma de mobilidade que abrange um largo espectro de finalidades quotidianas, regulares e pendulares, no âmbito das pequena e média distâncias, que fomos sendo habituados a atribuir aos transportes rodoviários, público ou privado, ao metro e, mais recentemente, às bicicletas (e trotinetas).

Não desprezando as suas funções lúdicas, é o caráter utilitário da pedonalidade que queremos aqui destacar, como sejam as deslocações laborais ou escolares, para a aquisição rotineira de bens, recurso a serviços, etc. Não se trata, portanto, de limitar a defesa da pedonalidade àquelas noções mais habituais associadas ao seu uso recreativo: passear calmamente na cidade, sozinhos ou em família ao fim de semana, conviver, fazer «jogging», geralmente em áreas com passeios largos, como na Foz ou em áreas delimitadas para o efeito dos bairros. Estas são situações que, de modo geral, não interferem com o status quo de um espaço citadino colonizado pelo automóvel, assim como não são propensas à a mobilidade pedonal abrangente aqui defendida. Nesse propósito, também não podemos limitar a nossa reivindicação a certas áreas pedonais que hoje em dia vão sendo criadas nos centros históricos das cidades ou em áreas de maior afluência turística e que respondem essencialmente a uma motivação económica. Trata-se aí de uma espécie de criação de centros comerciais ou parques temáticos a céu aberto, sem que essas áreas pedonais dedicadas ao consumo ofereçam uma continuidade aberta e fluida à restante rede pedonal da cidade. Essas são situações diversas daquela que aqui é visada: a pedonalidade como uma prática central no quotidiano dos cidadãos, estruturante para as necessidades destes e que não deve sofrer limitações na área disponível ou no período de acessibilidade.

A alternativa pedonal na mobilidade quotidiana sustentável
A população, crescentemente sedentária, adquiriu o hábito de utilizar o automóvel em qualquer deslocação de curta distância e porta a porta: ir ao quiosque, à pastelaria para tomar o café ou ir buscar os filhos à escola próxima de casa. O passeio de fim de semana tornou-se, desde cedo, sinónimo do automóvel, de preferência sem pôr os pés fora dele. Andar a pé, por seu turno, é uma das formas de mobilidade mais saudáveis, aquela que ativa a nossa estrutura orgânica, com efeitos extremamente benéficos no sistema osteo-artro-muscular, saúde cardiovascular, forma de combate à obesidade «epidémica» que grassa nas sociedades atuais, enfim, benefícios na condição física geral como é do conhecimento comum. Qualquer deslocação regular, obedecendo a imperativos horários, pode ser feita a um ritmo adequado e benéfico para o caminhante, sobretudo se tivermos uma cidade com menos emissões nefastas dos transportes motorizados e trajetos mais «verdes».

 

 

A mobilidade pedestre é integralmente amiga do ambiente (não assenta em duvidosas alternativas energéticas), é gratuita (excetuando a alimentação necessária para viver e ter capacidades motoras) e não exige qualquer equipamento (para além de alguma indumentária e calçado, eventualmente dispensáveis). Se a compararmos com outro meio de deslocação citadino preferencial – a bicicleta –, com as suas bem conhecidas qualidades no que toca aos pressupostos que norteiam a mobilidade sustentável, a pedonalidade apresenta-se como alternativa vantajosa, ou mesmo vital, em circunstâncias como as seguintes: o ciclista está mais exposto aos automóveis e veículos pesados em grande parte dos percursos urbanos desprovidos de ciclovias; a bicicleta não pode ser utilizada por pessoas com certas limitações motoras, como muitos idosos ou pessoas com incapacidades físicas (invisuais, pessoas que se deslocam em cadeiras de rodas, etc.); há também quem não saiba andar de bicicleta ou não disponha dos meios para tal. Acresce que muitas das referidas pessoas com limitações motoras restringem com frequência a sua vida quotidiana a pequenas deslocações perto das suas casas ou local de trabalho, sendo a utilização dos passeios ou vias pedonais o seu principal acesso à mobilidade autónoma. Esse acesso, que deveria ser garantido a todos, independentemente do seu grau de mobilidade, necessita de cuidados especiais na construção dos referidos passeios e na distribuição do mobiliário urbano.  Mais uma razão para termos vias pedonais de qualidade em todas as áreas das cidades, embora estejamos a assistir à tendência inversa, com passeios cada vez mais diminutos (e frequentemente obstruídos).

Dificuldades para a  pedonalidade preferencial
Vejamos, então, quais são as principais dificuldades com que se depara quem quer fazer da pedonalidade o seu meio de mobilidade preferencial:

No caso do Porto, mas também em muitas outras cidades, os passeios estreitos (ou mesmo ausentes) são um problema fundamental, que se tem vindo a agravar em direta proporção ao crescimento do parque automóvel e ao consequente aumento do espaço por este «consumido» na circulação e no estacionamento (a que acrescem disposições viárias que foram privilegiando a velocidade automóvel na cidade). O problema é agravado quando esses mesmos passeios são, a qualquer hora do dia, ocupados e obstruídos por todo o tipo de objetos e atividades: automóveis parados ou indevidamente estacionados, cargas e descargas, obras, esplanadas, etc, obrigando o peão a constantes desvios para o espaço rodoviário, exigindo-lhe hábeis e arriscados exercícios de contorcionismo para tentar evitar ora a sequência de obstáculos nos passeios ora o trânsito rodoviário nas vias por onde tem de se esgueirar. A sinalização tantas vezes deficiente: vejam-se as passadeiras sem semáforos em rodovias largas propícias à velocidade, ou quantas vezes mal situadas e de fraca visibilidade (p. ex., no início de cruzamentos, em que a visibilidade é duplamente deficiente: não só o condutor não vê o peão senão quando vira e está em cima dele, como tampouco este consegue ver o automóvel que se aproxima), a articulação inadequada nos semáforos (é recorrente a situação de simultaneidade do amarelo intermitente para o automóvel com o verde para o peão) e tantas outras situações.

A cidade (a)parece armadilhada para o peão, o perigo de atropelamento é sempre iminente, como comprovam os índices elevadíssimos e inaceitáveis deste tipo de sinistralidade. Os próprios ciclistas (a que se juntam atualmente os utilizadores de trotinetas), eles próprios vítimas do excesso de circulação automóvel, contribuem para agravar a insegurança do cidadão pedestre, que é sempre o elo mais fraco, quando recorrem aos passeios para sua própria segurança. Todas estas situações constituem uma violação do direito do cidadão à pedonalidade desimpedida e segura.

Por uma pedonalidade  estruturada e estruturante
Note-se que muitas das reivindicações aqui defendidas são semelhantes às dos ciclistas: exige-se uma rede de vias pedonais e passeios amplos – como os ciclistas, de ciclovias –, coerente no seu percurso, segura e autónoma. Seja para o peão ou para o ciclista, tal só será possível conquistando espaço ao transporte-rei, o automóvel, cujo uso urge ser desincentivado. No constante à mobilidade populacional, as rodovias devem ser progressivamente restringidas ao transporte público coletivo – que deverá ser reforçado em frequência horária e diversidade de percursos – para que uma redução considerável da circulação do automóvel privado na cidade se traduza em alargamento dos passeios e criação de uma rede efetiva e «convidativa» (preferencialmente, arborizada) de vias pedonais e ciclovias, promotora dos tipos de mobilidade associados.

As vias pedonais devem sempre ser consideradas como eixos essenciais da cidade. A pedonalidade deve ser revalorizada na sua dignidade e utilidade essenciais. Afinal, a deslocação pedestre é o alfa e o ómega da mobilidade humana para a generalidade da população, aquela que sempre antecede (até num sentido primordial) e sucede a todas as outras. No contexto urbano em causa, é aquela que mantém viva a cidade, todas as outras sendo de alguma forma suas subsidiárias.

 

18  Que Cidade Queremos
Colocado em 29-09-2020

ONDE CABEM NA CIDADE AS DESEJADAS HORTAS E JARDINS?
– OU DE COMO CORRIGIR UM ERRO HISTÓRICO
José Carlos Costa Marques

Agora que em todo o mundo, e nas cidades europeias, se exalta a agricultura urbana, os espaços verdes, os parques arborizados e os jardins, dão-se alguns conta de repente que o Porto é pobre em espaços onde os instalar. Porquê?

O executivo municipal, unânime – ou seja, também os três partidos que governam a cidade desde o 25 de Abril, PSD, PS e O Nosso Movimento –, aprovou em 11 de maio de 2020 uma recomendação proposta pela CDU para que os serviços da Câmara verifiquem a existência de terrenos municipais onde instalar hortas (preocupação motivada pelas hortas populares destruídas em final de abril por um proprietário de terrenos em Francos). Desconhecemos os resultados de tal verificação.

Quatro meses depois, em 14 de setembro, é a vez de a Assembleia Municipal aprovar unanimente – ou seja, também com o apoio dos mesmos três partidos – uma recomendação do PAN Pessoas Animais Natureza que insta o executivo municipal a criar mais hortas urbanas ou comunitárias na cidade. Unanimidade na recomendação. E na ação?

Leões e filhotes bebendo água. Quénia. Foto Paulo Talhadas dos Santos. Com os nossos agradecimentos.

 

Tão desejadas hortas e tão arredias
Na década 2010-2020, temos podido assistir a não poucos debates em volta da cidade, alguns deles relacionados com o Plano Diretor Municipal, muitos deles participados, ou mesmo promovidos por associações cívicas atentas ao ambiente urbano. Nos últimos meses, com a proximidade da aprovação de um novo PDM, algumas pessoas, cansadas  de  uma cidade atravancada de betão imóvel e de chapa metálica em movimento, têm vindo a sonhar e a propor mais hortas e mais jardins: todos os bairros da cidade deveriam ter um e uma, ninguém deveria  gastar mais de 10 ou 15 minutos a pé para aceder a um ou uma! Limitar a expansão urbana para que possam surgir essas hortas e jardins! Ideias justíssimas, ninguém que compreenda a situação histórica das nossas cidades poderá negá-lo. Mas… onde estão os espaços para uns e outras?

Não há espaços livres!
Quando do triste incidente de destruição das hortas de Francos, o Vereador do Ambiente e Vice-Presidente da CMP, segundo a imprensa, declarou que a autarquia está permanentemente a avaliar terrenos possíveis quer públicos quer privados para todos os moradores, e não apenas para os deste ou daquele local. Acrescentando que esta questão «deve ser olhada no panorama da cidade e considerando a dimensão metropolitana». Mas a autarquia olha, olha… e pouco ou nada encontra. E como poderia ser de outro modo?

A razão é simples, e deriva de um erro histórico crasso. Enquanto a cidade, a começar pelas suas autoridades (ou, dado o improvável, pelos seus cidadãos mais exigentes e atentos), não tiver a coragem de reconhecer e corrigir esse erro – e infelizmente são fortes os indícios de que o novo PDM em processo de aprovação será mais uma oportunidade perdida –, não haverá hortas urbanas, comunitárias ou populares para muitos dos que as desejam, não haverá espaços verdes públicos, parques e jardins decentes a 300, 500 ou 800 metros (conforme o grau de exigência) da casa de cada morador, e o Porto continuará muito longe da maior parte das maiores cidades europeias nesse domínio.  Não haverá portanto uma cidade mais saudável, e uma vida urbana mais propícia à saúde física e mental dos residentes.

O erro histórico
O erro histórico que explica que, olhando a cidade, não encontremos espaços livres para esses fins, é, desde que se iniciou o planeamento territorial na Segunda República (inaugurada pelo 25 de Abril), a inexistência de Reserva Ecológica Nacional – REN e de Reserva Agrícola Nacional – RAN no Porto (como aliás em Lisboa, os dois únicos concelhos do país onde tal aconteceu). Todo o espaço urbano foi declarado urbanizável, explícita ou implicitamente. Criou-se a situação ideal para uma especulação imobiliária desenfreada, especulação essa que tem produzido resultados desastrosos, agravados também pelo comportamento da administração central na multiplicação caótica e não poucas vezes redundante de infraestruturas agressivas.

É certo que o PDM está obrigado a contemplar uma Estrutura Ecológica Municipal, mas que tem que contentar-se com os restos que sobram do banquete imobiliário, das expetativas do chamado mercado, dos direitos adquiridos «legítimos» e supostos, da indiferença dos tribunais pelo cumprimento dos direitos ambientais consagrados na Constituição.

Ouvidos moucos
Ao Pelouro do Ambiente e ao Pelouro do Urbanismo foi dado conhecimento de um contributo que, sendo seguido, poderia estancar o desaparecimento acelerado dos solos ainda não impermeabilizados (inclusive o dos logradouros particulares que vêm minguando a olhos vistos). A campanha «50 espaços verdes em perigo 50 espaços a preservar» apresentou esse contributo logo publicamente em 2008, no final da sua primeira fase. Em 2017/2018, o livro que enuncia esses resultados (que, sendo ao nível de toda a AMP, inclui porém um capítulo extenso sobre o concelho do Porto) foi entregue pela associação que o editou às autoridades municipais. Até hoje não houve sobre esse assunto, da parte delas, mais que silêncio.

[Um apelo ao Presidente da CMP em defesa dos espaços ainda livres na cidade está aberto à assinatura dos cidadãos, sejam ou não residentes no concelho do Porto.]

Uma moratória para chegar lá
Se a cidade quer hortas, jardins, parques, espaços não impermeabilizados, regulação do clima, solos que comportem a vegetação que evita o agravamento do aquecimento climático e a devastação dos lençóis freáticos, se a cidade quer vida favorável à saúde, ao bem-estar e ao repouso dos moradores, tem um passo urgente a dar, e sem ele tudo o resto será cantiga de embalar: declarar uma moratória sobre a impermeabilização dos solos, sobre  a sua betonização e asfaltação, sobre a agressão desmesurada que se verifica atualmente no subsolo.

Tal decisão teria um impacto positivo enorme, já sobre as gerações presentes. A moratória deveria instituir um filtro exigente para a regulação de quaisquer exceções, casos pendentes, expetativas de mercado, direitos adquiridos reais ou fantasiosos. Deveria evitar aquilo em que se tem baseado a corrupção permanente e a todos os níveis, e muito em especial no setor imobiliário: a lei torna-se exceção, a exceção passa a ser a «lei» predominante.

Em próximo artigo, veremos que essa moratória é também uma obrigação ética das gerações presentes para com as gerações futuras.

[escrito em 27 de setembro de 2020]

Em tempo: segundo o Jornal de Notícias de 29  de setembro, o novo PDM do Porto estipula que a cidade «vai ganhar novos espaços verdes com o objetivo de aumentar a permeabilização do solo e criar uma <cidade esponja>, de forma a prevenir as cheias». Ou o redator da notícia não entendeu o que determina o novo PDM, ou este, que na data em que escrevemos ainda não está publicamente acessível, apresenta-se, neste ponto pelo menos, como uma descarada falácia demagógica. É que o mesmo PDM, segundo as autoridades, pretende aumentar a capacidade construtiva à superfície (e não, claro, pelo aumento em altura de prédios já existentes!). Pelas leis da física, isso implica impermeabilizar MAIS solos, não menos! A não ser que o PDM preveja a demolição de extensas áreas construídas e a retirada dos escombros, e substitua estes pelo solo húmico do tipo que lá existia anteriormente. Mais espaços verdes públicos em solos ainda não impermeabilizados NÃO AUMENTAM a área não impermeabilizada! A única via para a «cidade esponja» é a moratória que propomos, e já virá tarde (não a proposta, há muito feita – a sua concretização). Mas antes tarde do que nunca. Para já não falar da destruição do subsolo a grandes profundidades, que tem vindo a alastrar por todo o lado.


[escrito em 29-09-2020]

Elefante. África do Sul. Foto Paulo Talhadas dos Santos. Com os nossos agradecimentos.

 

19  Que Cidade Queremos
Colocado em 19-10-2020

TERRITÓRIO URBANO E PROTEÇÃO DO COMÉRCIO
TRADICIONAL E DE PROXIMIDADE
Daniela Pinto Pugh

 

Ilhéu das Rolas, São Tomé e Principe. Paulo Talhadas dos Santos. Com os nossos agradecimentos.

 

Para nos defendermos do império das grandes cadeias comerciais deveriam ser criadas providências para o estabelecimento de lojas tradicionais, e mercados ou feiras de frescos, acessíveis a cada habitante até cerca de 800 metros de distância da sua residência ou local de trabalho (aproximadamente 10 minutos a pé), e fortes restrições de licenças para as referidas grandes cadeias. Para isso seria preciso um levantamento minucioso da implantação do comércio tradicional, para que as licenças fossem concedidas e ajustadas conforme a população da sua zona de influência.

Uma breve análise à localização dos mercados e feiras de frescos, além da dos supermercados de grandes cadeias, revela uma grande ausência de todos eles na parte oriental da cidade. Para combater este e outros potenciais «desertos alimentares» (onde a população é obrigada a deslocar-se de transporte para ter acesso a alimentos frescos), medidas de incentivo deveriam ser tomadas para combater essa carência, como por exemplo o estabelecimento de feiras com a isenção do pagamento das taxas municipais tributadas aos vendedores.

A proteção dos mercados municipais é imperativa como outra medida de combate ao alastramento das grandes cadeias. Assim seria indispensável uma área de proteção em redor dos mercados municipais fixos, de 3km (aproximadamente 10 minutos de automóvel), onde nenhuma licença possa ser cedida para a implantação de uma grande superfície, vulgo hipermercado. Os hipermercados convidam ao uso do automóvel, e têm um grande impacto nas áreas onde estão estabelecidos, pela necessidade de lidar com o fluxo de automóveis nas horas de maior afluência. Os seus clientes seriam assim obrigados a deslocarem-se a uma maior distância, e quem sabe ponderar talvez se aquele passeio de 10 minutos a pé até ao mercado da sua zona não valeria a pena…
Daniela Pinto Pugh

Nota: sobre território urbano e grandes superfícies, veja também:

Cidades aos pés das grandes superfícies?

Quem planeia a cidade? A sociedade ou as grandes empresas comerciais?

Paisagem submarina no Havaí. Fotografia subaquática. Foto Paulo Talhadas dos Santos. Com os nossos agradecimentos.

20  Que Cidade Queremos
Colocado em 21-10-2020

PLANEAR O TERRITÓRIO URBANO
TENDO EM MENTE OS DIREITOS DAS GERAÇÕES FUTURAS
José Carlos Costa Marques

Não podemos planear o território da cidade, do município, sem ter em conta os direitos das gerações futuras. São esses direitos que estão em causa quando se fala de sustentabilidade – palavra hoje muito deturpada no dialeto dos palradores. E, tal como dissemos em artigo anterior, para isso é preciso corrigir um erro histórico que deformou profundamente, e ameaça continuar a deformar, o uso do solo no território do concelho.

Antes de nos determos, em próximo artigo, nesse aspeto concreto que considera as obrigações das gerações e decisores atuais perante as gerações futuras, vamos abordar sucintamente a necessidade de reconhecimento geral desses direitos. Começamos por uma experiência política já consagrada em lei, no País de Gales. Passaremos em seguida à evocação do trabalho, em França, de uma organização não governamental, e à reflexão jurídica sobre o assunto nesse país. E concluiremos com um autor americano que se insere no movimento para a convocação de uma Convenção Mundial voltada para a consagração dos direitos das gerações futuras no contexto das relações intergeracionais.

Em próximo artigo, analisaremos de que forma o município deverá ter em conta as gerações futuras nos três grandes domínios ambientais (o ar, a água, o solo) e voltaremos a referir o erro histórico já aludido e a necessidade da sua reparação parcial.

Uma lei pioneira num pequeno país

 

Mar Vermelho. Fotografia subaquática. Paulo Talhadas dos Santos. Com os nossos agradecimentos

 

É invulgar que na política exista visão para além do ciclo eleitoral de quatro a cinco anos. O que vamos narrar é um caso pioneiro, pois parte da consagração, na lei e nos processos de decisão, do bem-estar dos ainda não nascidos, algo provavelmente único no mundo. Essa lei, diríamos, «revolucionária» – se a palavra não fosse ambígua e estafada –, é ao que sabemos a primeira do mundo a consagrar os direitos das gerações futuras, tendo em teoria mudado por completo o mecanismo da tomada de decisões governamentais. Surgiu em 2015 no País de Gales (Well-being of Future Generations Wales Act) por proposta de Jane Davidson, que, entre 2007 e 2011, foi ministra do ambiente, da sustentabilidade e habitação, e é autora de várias obras que ajudaram a preparar a receção da nova lei.

Num país em decrepitude, 40 anos após o encerramento das indústrias pesadas do carvão e do aço, o projeto Skyline procura reverter a decadência, devolvendo o país à comunidade e em benefício desta, com base na energia renovável partilhada entre as pessoas que a produzem, nas escolas da floresta, nas atividades económicas sustentáveis e numa paisagem local mais natural e completa.

No seu livro #Future Gen: Lições de um Pequeno País, Jane Davidson traça a história dessa lei no contexto do processo de evolução de poderes no Reino Unido (devolution) e mostra como o desenvolvimento sustentável efetivo é reconhecido desde o início na nova estrutura constitucional do País de Gales, na senda do que já se apontava nos seus livros anteriores e noutros documentos (Um País de Gales, Um Planeta; e: Aprender a Viver Diferente).

Decorridos cinco anos de vigência da lei, um relatório de 800 páginas foi publicado pela Comissária para as Gerações Futuras, Sophie Howe. O governo galês trabalha lado a lado com comissários independentes, que têm um eleitorado e um conjunto de poderes que lhes permite instar governo e serviços à ação e à prestação de contas. No relatório, Sophie Howe antevê um SNBE (serviço nacional de bem-estar) destinado a cultivar uma abordagem preventiva à saúde para manter as pessoas saudáveis (e não já um serviço nacional da doença como o seu próprio fundador afirmou ter-se ele tornado). E ainda um plano «verde» de recuperação económica e um rendimento básico universal. Num país que dispõe da legislação ambiental talvez mais ambiciosa do mundo, podemos procurar inspiração para que o pensamento de longo prazo e a abordagem preventiva pesem cada vez mais nas decisões políticas. E isso também no planeamento territorial, seja no país seja a nível mundial, e muito concretamente nos planos diretores municipais. (1)

 

Islândia. Foto Paulo Talhadas dos Santos. Com os nossos agradecimentos.

 

Cidadania de base e reflexão jurídica
Remontando a reflexões e a intervenções já desde os anos 1990, foi fundada em França, em 1996, uma ONG – organização não governamental, a primeira no mundo, que saibamos, que adotou como lema o direito das gerações futuras. O nome inicial era «Movimento para os direitos e o respeito das gerações futuras». A partir de 2008, viria a ser designada apenas por «Gerações Futuras – Générations Futures». Se bem que, influenciada pelo facto de os seus fundadores serem agrónomos e investigadores agronómicos, se tenha focalizado mais intensamente nas ameaças para as gerações futuras decorrentes da agricultura química convencional, nomeadamente dos pesticidas, a associação assumiu como missão reunir os cidadãos desejosos de se oporem às degradações sociais, ecológicas e humanas em geral, e de responsabilizarem as pessoas e organizações causadoras das diversas poluições. Com o tempo, viria a destacar-se na denúncia dos disruptores endócrinos e seu impacto na saúde humana que, ao atingirem o aparelho reprodutor, põem diretamente em causa os ainda não nascidos.

Também em França, desenvolveu-se paralelamente uma reflexão jurídica que aponta o direito das gerações futuras como um novo humanismo jurídico. Nessa reflexão destaca-se, desde há mais de vinte anos, Émilie Gaillard, que considera o conceito jurídico de «direito das geraçãoes futuras» uma ferramenta indispensável para apoiar a mudança de paradigma exigida pela preservação do ambiente e das populações no longo prazo.

Defender a humanidade perante os ecocídios, criar sociedades mais justas, integrar no direito nacional e internacional a proteção jurídica do futuro, são imperativos que decorrem da própria ideia de «gerações futuras» com direitos, intimamente ligada à de sustentabilidade, durabilidade, perenidade. Esta corrente de pensamento jurídico propugna a extensão da temporalidade do direito para nele integrar a proteção das populações e das espécies no longo prazo.

O conceito deste novo direito das gerações futuras existe em germe desde 1945, quando surgiu o de «crime contra a humanidade» e o de «património comum da humanidade», e ganhou impulso e corpo com a célebre Cimeira da Terra de 1992, no Rio de Janeiro. Aí se afirma que é necessário não comprometer a capacidade das gerações futuras de responderem às suas necessidades, e toma forma o princípio de precaução que figura já em diversas convenções internacionais.

Desde 2015, multiplicaram-se no mundo numerosas ações judiciais interpostas em nome das gerações futuras. Decorrem nos Estados Unidos vários milhares de ações em nome da justiça climática. Alastra em todo o mundo da cidadania e do direito a convicção de que não existe desenvolvimento a não ser aquele que é verdadeiramente duradouro e realizado no respeito dos equilíbrios do planeta e da vida humana. (2)

 

Havaí. Fotografia subaquática. Paulo Talhadas dos Santos. Com os nossos agradecimentos.

 

Rumo a uma Constituição Mundial para as Gerações Futuras
Em especial desde 2014, tem vindo a ser desenvolvido e propugnado o conceito de uma Convenção Constitucional Mundial a favor das Gerações Futuras inspirada na convocatória da Convenção Constitucional Americana de 1787. Na defesa dessa convocatória tem-se destacado Stephen M. Gardiner, professor do departamento de filosofia da Universidade de Seattle, no estado de Washington, EUA.

Gardiner parte da constatação de que, no que toca às relações intergeracionais, existe uma lacuna de governação que se traduz numa «tirania da contemporaneidade» (e dos contemporâneos!). As instituições contemporâneas falham ao não enfrentarem a ameaça iminente à humanidade, em especial aos vindouros e às outras espécies, consentindo que a ameaça cada vez mais se avolume. Um exemplo de primeiro plano são as alterações climáticas.

Para ultrapassar essa «tirania», Gardiner defende reformas institucionais que seriam postas em prática pelos povos, pessoas individuais interessadas, comunidades locais, ativistas, organizações não governamentais, governos, antigos líderes mundiais e outros, que apelariam à convocação urgente de uma tal convenção, em resposta a uma ameaça fundamental iminente para a humanidade e para a natureza não humana.

Deste século ao próximo, essa ameaça paira e arrasta-se. A situação em que nos encontramos é, até agora, a de um malogro severo e prolongado na resposta da Humanidade à ameaça climática, um malogro que já vai em trinta anos, desde o primeiro relatório do IPCC (Painel Internacional sobre as Alterações Climáticas) e desde 1992 (Cimeira da Terra no Rio de Janeiro), com fracassos sucessivos em termos de ação eficaz (Acordo de Quioto, Cimeira de Copenhaga, Acordo de Paris) e suas sequelas. A complacência política e analítica das decisões ao mais alto nível, desembocando em obstáculos levantados pelas instituições, consolida a já mencionada tirania dos contemporâneos (face aos vindouros, os tiranizados!), impedindo uma ação intergeracional eficaz.

Caso paradigmático ocorre quando as atuais gerações mais velhas, ao mesmo tempo que obtêm para si próprias benefícios modestos, infligem, ao fazê-lo, custos severos que vão recair sobre as gerações seguintes (dívida ecológia, poderia dizer-se, que paralelamente acompanha a dívida financeira, como acontece em Portugal e com o novo-riquismo patético que aqui predomina). No processo, são violadas as mais razoáveis normas éticas.

Para enfrentar sem tergiversações o problema com que se defrontam as gerações presentes, e o enorme ónus que se preparam para legar aos vindouros, Gardiner vê na Convenção Constitucional Mundial a oportunidade de nos debruçarmos sobre a situação e de propormos a reforma institucional capaz de a desbloquear. Os passos práticos indispensáveis para alcançar a necessária reforma exigem à humanidade um salto de gigante. (3)

(1) Russell Warfield, «Acting for the future», Resurgence & Ecologist, n.º 322, september/october 2020, pp. 21-24

(2) «Le droit des générations futures, un nouvel humanisme juridique»
https://ideas4development.org/droit-generations-futures-humanisme-juridique/

(3) Stephen M. Gardiner, «Motivating (or Baby-Stepping Toward) a Global Constitutional Convention for Future Generations». Environmental Ethics, Volume 41, Number 3, Fall 2019, pp. 199-220.

 

Catarata em Madagáscar. Foto Paulo Talhadas dos Santos. Com os nossos agradecimentos.

21 Que cidade queremos
Colocado em 24-10-2020

CIDADE À MEDIDA DAS PESSOAS!
– PRINCÍPIO ORIENTADOR PARA A MOBILIDADE
Vera Diogo, Joana Marques, João Teixeira

O princípio orientador de que a cidade deve servir as pessoas, isto é, promover o seu bem-estar, a sua saúde e o seu desenvolvimento biopsicossocial, deve expressar-se de modo particularmente significativo no que respeita à mobilidade. Uma cidade a que todos e todas têm direito, é uma cidade pensada para ampliar possibilidades, considerando as diferentes condições e opções dos indivíduos e, simultaneamente, assumindo um compromisso com um futuro sustentável e com a neutralidade carbónica. Assim, as vias de circulação e os meios de mobilidade devem ser desenhados à medida das pessoas e com foco na fruição e apropriação do espaço pelas mesmas.

Contudo, nas cidades portuguesas prevalece ainda a hegemonia do automóvel, convertendo o que poderia ser espaço público em espaço rodoviário (1).  De facto, de acordo com o Eurostat, Portugal apresenta a segunda maior percentagem de utilização de automóvel em toda a UE com 88,4 por cento de todas as viagens realizadas através deste modo (2). Esta sobredependência tem um impacto avassalador sobre a sociedade, destacando-se a sua contribuição para as alterações climáticas com o setor dos transportes a ser já responsável por 23 por cento de todas as emissões de CO2 (3). Um efeito ainda mais pernicioso e muitas vezes ignorado é o número de mortes e feridos resultantes de acidentes rodoviários. De acordo com a OMS, os acidentes rodoviários são a oitava principal causa de morte no mundo, sendo a principal causa de morte para a faixa etária dos 5 aos 29 anos. Só em 2016, morreram 1,35 milhões de pessoas vítimas de acidentes de viação, com o número de feridos estimado nas dezenas de milhões (4).

Mobilidade e saúde
Neste cenário, os meios ativos de transporte como o caminhar, pedalar, entre outros, são cruciais para a nossa humanidade, democratizando o acesso à cidade e ao espaço público, promovendo interações sociais e relações de proximidade e potenciando as nossas capacidades, ao invés de provocar a sua redução, como comprovam os dados relativos à atividade física, que muito se relacionam com a elevada dependência do transporte motorizado individual. Em 2018, 46 por cento dos europeus declararam nunca praticar exercício físico, 15 por cento dos quais não caminhavam sequer 10 minutos seguidos durante a semana, e 8,5 por cento passam oito horas e meia sentados durante o dia (5).

Em Portugal, a inatividade física da população ronda os 79 por cento (6). É curioso notar o desconhecimento por parte da população portuguesa relativamente ao conceito de atividade física, associando-a apenas a práticas estruturadas e não a atividades quotidianas (7). O Programa Nacional para a Promoção da Atividade Física inclui a valorização dos meios de transporte ativos como «uma das estratégias mais práticas e sustentáveis para aumentar a atividade física dos cidadãos de todas as idades». Destaca ainda que cabe ao «ordenamento do território (…) incentivar estilos de vida mais ativos»(8). A Estratégia Nacional de Mobilidade Ativa Ciclável lançou objetivos ambiciosos até 2030, incluindo a subida da quota modal de utilização da bicicleta de 1 por cento para 7,5 por cento no território nacional e até 10 por cento nas cidades (9). Os municípios como entidades representadas na conceção desta estratégia e implicadas nas medidas nela definidas, em linha com o exercício das suas competências político-administrativas, têm uma responsabilidade importante na sua concretização.

A promoção dos modos ativos reveste-se de especial importância no contexto pandémico da COVID-19 que, fruto das suas características de infeção, tem assolado os sistemas de transporte público levando a quedas nunca antes vistas no número de utilizadores. Aqui, a promoção dos modos ativos, com especial destaque para a bicicleta devido à sua competitividade nos tempos de viagem (10), terá um papel preponderante para limitar uma mudança modal em massa do transporte público para o automóvel privado. Desta forma, o conjunto de propostas para a promoção dos modos ativos, apresentadas pelos autores desta Tribuna Aberta na revisão crítica do PDM, poderão ser um enorme contributo para um desenvolvimento sustentável em todos os seus pilares: no ambiental, no social, na coesão territorial, na saúde e na economia.

 

(1) Ver Sheller, M., & Urry, J. (2003). Mobile Transformations of ‘Public’ and ‘Private’ Life. Theory, Culture & Society, 20(3), 107–125.Sheller, M., & Urry, J. (2003). Mobile Transformations of ‘Public’ and ‘Private’ Life. Theory, Culture & Society, 20(3), 107–125.

(2) Eurostat (2020). Car travel dominates EU inland journeys. Disponível em: https://ec.europa.eu/eurostat/en/web/products-eurostat-news/-/EDN-20200916-1?inheritRedirect=true&redirect=/eurostat/en/news/whats-new

(3) Graham-Rowe, E. et al. (2011) ‘Can we reduce car use and, if so, how? A review of available evidence’, Transportation Research Part A: Policy and Practice. Elsevier Ltd, 45(5), pp. 401–418. doi: 10.1016/j.tra.2011.02.001.

(4) OMS (2018) Global status report on road safety 2018. Geneva.

(5)  Comissão Europeia, Special Barometer 472: Sport and Physical Activity. Disponível em: https://data.europa.eu/euodp/en/data/dataset/S2164_88_4_472_ENG

(6) Loyen, A., et al. (2017). Sedentary Time and Physical Activity Surveillance Through Accelerometer Pooling in Four European Countries. Sports Medicine, 47, 1421–1435

(7) Ministério da Saúde, Direção Geral da Saúde (2019). Programa Nacional para a Promoção da Atividade Física.  Relatório Anual, 2019.Disponível em:  https://home.mycloud.com/public/5d625e48-222e-4e6d-9718-615ea6cd28c0/file

(8) Direção Geral da Saúde (2020). Programa Nacional para a Promoção da Atividade Física. Perguntas e Respostas. Disponível em: https://www.dgs.pt/programa-nacional-para-a-promocao-da-atvidade-fisica/perguntas-e-respostas.aspx

(9)  Diário da República, n.º 147/2019, Série I de 2019-08-02. Resolução do Conselho de Ministros n.º 131/2019. Estratégia Nacional para a Mobilidade Ativa Ciclável 2020-2030. Disponível em: https://dre.pt/home/-/dre/123666113/details/maximized

(10) U. S. J. Dekoster, Cycling: the way ahead for towns and cities. European Commission, 1999.

Cascata de São Nicolau. São Tomé. Foto Paulo Talhadas dos Santos. Com os nossos agrdecimentos.

 

22  Que Cidade Queremos
Colocado em 8 de novembro de 2020

SOLOS LIVRES – UM DIREITO DAS GERAÇÕES FUTURAS
José Carlos Costa Marques

Toda a gente compreende quem são as gerações futuras no plano individual e familiar. Regra geral todos desejam o melhor para os seus filhos, netos, bisnetos. Excecionalmente, há quem chegue a conhecer trinetos.

No plano de uma comunidade de vizinhança, que facilmente se pode conceber como uma família alongada e sui generis, já é necessário um sentido ético mais apurado para conceber, muito além do bem da nossa própria geração ou da dos filhos, o bem, os interesses e, sobretudo, os direitos das gerações futuras. Para que esse sentido se concretize, é preciso compreender quais são os interesses dessas gerações futuras que devemos, desde já, ter em conta. E isso antes, bastante antes, e mesmo muito antes, da vinda à existência desses seres humanos futuros.

Solidariedade das gerações presentes e futuras
Embora não haja o hábito de pensar nesses termos, é nesse sentido ético perante  as gerações futuras que assenta o conceito de «sustentabilidade», expresso num elo de solidariedade entre as gerações presentes e as futuras, algo que se torna especialmente evidente quando nos detemos sobre os aspetos básicos do bem-estar, que são, afinal, a qualidade e integridade das condições da existência humana. Na raiz de tudo estão (I) o ar; (II) a água; (III) o solo.

«Sustentabilidade» e «desenvolvimento sustentável», infelizmente, são hoje palavras papagueadas não raras vezes por quem não faz ideia do que  representam, frequentemente confundidas com aceções financeiras, económicas e sociais de curto ou, quando muito, médio prazo, o que é a negação da ideia de durabilidade e perenidade subjacente a essas palavras. Antes mesmo de tais termos se terem vulgarizado, pensadores havia que se debruçavam sobre essa ética do futuro, e que preferiam referir-se aos valores de perenidade que há que manter constantes ao longo do tempo, protegendo-os de uma impensada, imprudente e leviana delapidação definitiva em utilizações que tornam impossível, a não ser à escala geológica de um longínquo futuro enigmático, qualquer reconstituição ou regeneração que sequer se aproxime do que eram os valores entretanto destruídos.

Do plano universal  das obrigações perante as gerações futuras – plano em que devem mover-se todos os seres humanos capazes de se sentirem cidadãos do mundo, e instituições como a Organização das Nações Unidas e todas as que fazem parte do seu sistema, bem como todos os seus estados-membros e muitas outras organizações nacionais e internacionais governamentais e não governamentais, plano esse que lamentavelmente deixa hoje ainda muito a desejar –, passemos ao plano de uma cidade ou de um município. Por exemplo, o Porto.

Quanto às condições de existência no longo prazo (o das gerações futuras), ou seja, o ar, a água e o solo, como poderemos nesse quadro encarar as obrigações das gerações presentes que se não vinculem à «tirania dos contemporâneos» que caraterizámos em artigo anterior?

Quanto ao ar: o ar não tem limites

 

Gelos de Portugal. Foto Paulo Talhadas dos Santos. Com os nossos agradecimentos.

 

Numa época histórica que precedeu os meados do século XX e que remonta à «revolução industrial» (tardia no nosso país), houve no Porto numerosas fábricas. Pequenas algumas, outras relativamente grandes, e numerosas pequenas indústrias artesanais, como as padarias, que usavam lenha ou carvão como fonte de energia, fonte usada também por meios de transporte dentro da cidade como os comboios da linha do Douro de São Bento a Rio Tinto, da Trindade à Senhora da Hora na linha da Póvoa. A isso se ligam as altas chaminés subsistentes, algumas das quais foram conservadas como património industrial ou memória histórica, ou simples adorno de urbanizações modernas. Chaminés essas cuja altura era já uma medida preventiva perante a poluição ao rés da terra, pois facilitavam a dispersão das emissões poluentes. A partir dos anos 1950 inicia-se um abandono sistemático embora gradual dessas indústrias dentro da cidade, uma deslocalização industrial ainda não totalmente concluída e que, numa primeira fase, exportou a sua poluição para concelhos vizinhos ou mais ou menos distantes. A partir dos anos 1980, optou-se pelo equipamento dessas indústrias com dispositivos que, com maior ou menor êxito, evitavam, ou apenas mitigavam, a emissão de poluentes.

Tráfego automóvel e qualidade do ar
Na cidade, e aproximadamente pela mesma ocasião, com o aumento rápido do tráfego automóvel acompanhado do desmantelamento da rede de elétricos (uma verdadeira rede de «metro» ligeiro, que foi sacrificada para dar todo o espaço das ruas ao veículo individual, erro palmar sobretudo porque já então evitável dado o primeiro choque petrolífero de 1973, e do qual a cidade não deixou ainda de sofrer as consequências), a principal fonte de poluição passou a ser a das emissões dos veículos, pesados e ligeiros, avultando estes pelo seu número incessantemente crescente.

É sabido que os decisores políticos, os engenheiros de tráfego e do ambiente e os sanitaristas há muito se aperceberam de que se impunha não permitir a continuação do acréscimo de veículos, até porque a degradação contínua da qualidade do ar na cidade se ia claramente revelando. Para além disso, era o espaço público que se degradava também, e a própria velocidade de circulação que mostrava os seus limites, aprisionada nos engarrafamentos e na rede de arruamentos pejada de veículos, e onde se tornava inviável o uso das duas rodas, com e sem motor. Enquanto isso, aumentava a sinistralidade de todos os modos de transporte. Desarmados, quem mais a sofria eram os pedestres e os ciclistas. As autoridades, excedidas, e ansiosas pelo voto dos automobilistas, mostravam-se incapazes e pouco desejosas de medidas restritivas. Com a situação a agravar-se continuamente, começou a ouvir-se a palavra de ordem «tirar carros das ruas» e apareceram, muito timidamente, ações nesse sentido, e até o uso da expressão por parte de certos setores para justificar ou recorrer exageradamente a soluções elas próprias problemáticas.

Por vezes pensa-se que substituir carros a gasolina, diesel ou biocombustíveis por carros elétricos (1) resolve o problema das alterações climáticas e da poluição do ar nas cidades. Fica esquecido (além dos materiais utilizados nos próprios carros elétricos, eles também fonte de poluição, apesar de remota, e/ou de esgotamento de recursos) o uso do espaço de circulação, que acaba por ser o problema de maior monta, uma vez que, estritamente do ponto de vista da qualidade do ar, os veículos elétricos na cidade podem representar uma melhoria considerável, com efeitos imediatos sobre o viver quotidiano dos residentes. Mas não tornam elástico o espaço!

Os incêndios do coberto vegetal
e a qualidade do ar
Uma vez melhorada a qualidade do ar consentida pela evolução tecnológica e pela reorganização dos fluxos pendulares do trânsito dentro da cidade e entre cidades – reorganização de que no entanto pouco se fala e na qual muito falta fazer ainda – restará a resolver, caso se mantenham as atuais tendências, a poluição do ar proveniente dos incêndios do coberto vegetal do território contíguo à cidade, sobretudo a leste e nordeste. Desses incêndios provêm, em alguns dias e em alguns anos, queda de fuligem e cinzas e circulação de fumos que atingem a cidade. Juntamente com os municípios vizinhos, o Porto é devedor, perante as gerações futuras, de uma reestruturação profunda desse coberto arbóreo que o rodeia, de uma transformação da sua paisagem, a que não pode aliás faltar o apoio decisivo da administração central. (2)

Resumindo, podemos dizer que o principal dever da cidade para com as gerações futuras no que concerne à qualidade do ar é a diminuição e progressiva erradicação de veículos movidos por queima de combustíveis, o que simultaneamente resulta positivo em termos de contributo à mitigação das alterações climáticas e em termos de regulação térmica dentro da própria cidade.

Em complemento, a arborização mais intensa da cidade, a manutenção e aumento do patrimóneio arbóreo, serão também indispensáveis para essa melhoria da qualidade do ar e da regulação térmica, em ambos os casos com repercussão positiva na saúde física e mental dos habitantes. É evidente, embora isso entre já no tema do solo, mais adiante abordado, que a extensão e qualidade da arborização depende da máxima extensão possível que as autoridades decidam salvaguardar dos solos ainda permeáveis que restem na cidade. (3)

Quanto à água: limitações em quantidade e qualidade

 

Gelos de Portugal. Foto Paulo Talhadas dos Santos. Com os nossos agradecimentos.

 

Se a atmosfera é, felizmente, varrida pelos ventos, que atenuam a poluição do ar, se, felizmente, não tem o Porto um «ar» que lhe pertença como próprio e exclusivo, situação mais paradoxal é a relativa à água.

A recolha e utilização da água da chuva que cai no território de fronteiras bem delimitadas do município, é tema a merecer atenção e que poderia permitir à cidade controlar, dentro desses limites territoriais, determinadas quantidades de água e a sua qualidade, de forma mais efetiva do que pode fazer naquela que recebe de fora como água de abastecimento geral, que teria aliás que manter-se como a principal fonte de abastecimento. Pela sua complexidade, e por supormos ser uma reflexão e investigação quase inexistente ou apenas incipiente, limitamo-nos aqui a sugeri-la. Embora a sugestão já tivesse sido feita em 2003 pela associação Campo Aberto e outras associações. (4)

Água canalizada e água engarrafada
A qualidade da água, a ausência ou presença nela de poluição bacteriológica ou devida a numerosas substâncias químicas que circulam na bacia fluvial do rio Douro, com origem em certas indústrias, incluindo transportes, e na agricultura, está sob responsabilidade, no nosso caso, de empresas abastecedoras fora do concelho do Porto, anteriormente veiculadas na cidade pelos antigos serviços municipais e atualmente pelas suas reencarnações como empresas. A tomada de consciência ambiental, ainda muito insuficiente entre nós, permitiu no entanto nas últimas décadas que parte da população se apercebesse do problema que constitui o consumo em massa de água engarrafada. Nada menos que um desastre ambiental de grandes proporções, não só pela repercussão nas nascentes e lençóis freáticos, mas também pela sua distribuição e embalagem, ao nível dos materiais desta e suas consequências, que podem ser graves no plano da saúde dos consumidores.

As empresas ou serviços de distribuição de água canalizada a domicílio partiram daí em alguns dos seus métodos de comercialização e publicitação da água que distribuem, elogiando o seu elevado grau de qualidade, segurança e baixo preço. Este último fator, de facto, quando comparado com o da água engarrafada, é devastador para esta  última – o que nos obrigaria a refletir seriamente sobre as razões do seu contínuo êxito comercial, não obstante as campanhas diretas ou indiretas que a criticam.

Acresce que algumas organizações de ambiente vieram reforçar e credibilizar essas campanhas, desaconselhando vivamente o uso da água engarrafada e afirmando a fiabilidade completa da água canalizada. Decerto não há hoje alternativa real à água da torneira, antes de mais pelo preço e pelas quantidades disponíveis. Mesmo entre aqueles que recorrem à água engarrafada para beber, raros serão os que a utilizam regularmente para cozinhar.

No entanto, sem com isso pretendermos inquietar ninguém, a principal obrigação das organizações de ambiente é para com a verdade. E é falso que não existam problemas sérios (que na melhor das hipóteses estarão a ser objeto de tentativas de solução mas que ainda persistem), em termos sanitários, em relação a essa água. A entrada de resíduos de medicamentos e de não poucas substâncias químicas provenientes da indústria e da agricultura química industrializada nos locais de captação está longe ainda de cabalmente conhecida e neutralizada. A própria substância mais corrente no tratamento da água de consumo, o cloro, pode, em presença de substâncias orgânicas, dar origem a compostos perigosos para a saúde. Não se põe em dúvida o esforço das empresas de água canalizada em fornecerem água o mais segura possível. Consideramos no entanto que cabe à consciência ambiental analisar e identificar limites, propor melhorias, interrogar-se sobre possíveis lacunas, e não fazer publicidade de um produto por mais fiável que ele se apresente.

Em qualquer caso, a água que abastece a cidade para beber e cozinhar – as utilizações com maior incidência na saúde – vem de fora dela mas de uma bacia hidrográfica, a do Rio Douro, em que está inserida e na qual participa. O Porto deve pois às gerações futuras que o venham a habitar a vontade de se empenhar decididamente em tudo o que possa contribuir para erradicar, controlar ou mitigar os fatores que interferem negativamente na qualidade da água dos rios que constituem a bacia hidrográfica do Douro e, consequentemente, do próprio Douro, que deve continuar a ser um Rio Vivo, onde a qualidade da água esteja menos ameaçada e onde as várias poluições que o contaminam sejam identificadas e combatidas. Empenho que deve sobrepor-se a quaisquer interesses setoriais que, nessa bacia fluvial, façam do rio uma fonte de negócios sem respeito pela melhoria da qualidade da água.

Quanto ao solo: o solo, esse, não é elástico

 

Gelos de Portugal. Foto Paulo Talhadas dos Santos. Com os nossos agradecimentos.

 

Se a atmosfera que cobre a cidade é felizmente ventilada, se não há «ar» que pertença propriamente à cidade; se a água que a abastece vem de fora dela mas é localizável em determinados pontos – a água está sempre em fluxo mas não o leito dos rios, possível de localizar estavelmente; já o solo é o único dos três grandes fatores vitais que se encontra circunscrito a um determinado território com limites precisos e sem qualquer hipótese de elasticidade. O ar poluído pode  ser renovado, a água que abastece a cidade renova-se constantemente no seu ciclo apesar dos disfuncionamentos que o possam atingir por motivo de intervenção humana. Mas o solo, uma vez delapidado, não pode ser reconstituído num estado saudável e funcional, e um ciclo geológico teórico de renovação não cabe num horizonte histórico previsível. (5)

Área construída e delapidação do solo
Uma cidade pode sofrer um processo de expansão da sua área construída – mas esse processo é forçosamente ao mesmo tempo um processo praticamente irreversível de diminuição da área de solos permeáveis, cujas funções de regulação do ciclo hídrico e dos microclimas locais são indispensáveis ao equilíbrio vital da população residente. Há quem defenda que a construção em altura é a solução, mas tal seria ignorar os calcanhares de aquiles dessa fuga para o alto. Por um lado, as fragilidades técnicas e energéticas que redundam em questões de segurança (não das técnicas construtivas em si mas as relacionadas com os circuitos elétricos – apagões, uso de elevadores – e situações de catástrofe como inundações, incêndios e outras). Por outro lado, os fatores antropológicos. Não é por acaso que a torre que se ergue muito acima da paisagem envolvente se tornou o símbolo babélico da conflitualidade. A voga moderna dos arranha-céus foi já confrontada não poucas vezes a prenúncios do que pode acontecer em ocasiões propícias à catástrofe. Como também tem sido observado, a atual pandemia «esfriou» consideravelemente a confiança no gigantismo urbano e suas termiteiras.

No nosso caso, uma explosão construtivista de muito pequena escala quando comparada às de Nova Iorque, São Paulo ou Pequim, despertou, no final dos anos 1990, um repúdio instintivo por parte de não poucos setores da população, que viria a ser retomado e assumido explicitamente por organizações e cidadãos imbuídos de valores ecoambientais. A contragosto ou perante o silêncio interessado dos que comandaram tal explosão. O PDM de 2005, que está aproximar-se do fim do seu período de vigência, apesar de algumas ambiguidades e contradições, introduziu alguma acalmia e fez opções de algum modo restritivas dessa «febre». O PDM que lhe vai suceder, mantém e quer efetivar a expansão construtiva do seu antecessor (em especial nalgumas das chamadas UOPG – Unidades Operacionais de Planeamento e Gestão) e introduz novas zonas de expansão, que procura justificar em boa parte pela localização junto às interfaces atuais ou futuras com «entradas» de linhas de metro na cidade.

É inevitável um limite à expansão construtiva
Seja como for, a expansão construtiva em área de solo tem que ter um dia um limite, ou decidido com base na prudência e nos direitos das gerações futuras, ou imposto pela realidade física crua. Pensamos que este é o momento histórico para o pensar e para o decidir. O novo PDM, cuja proposta já praticamente finalizada pelo executivo municipal poucas alterações sofrerá no essencial, ignora a questão. A cidade terá no entanto que optar: ou prossegue indefinidamente o ímpeto construtivo com o risco de tornar cada vez mais asfixiante o espaço que habitamos – ou decide uma paragem para rever e filtrar os solos ainda não impermeabilizados por forma a identificar os melhores solos, os solos mais férteis e menos contaminados, e reservá-los para as futuras gerações e para funções ecológicas necessárias. Essa seria a oportunidade – ano após ano mais estreita – de reverter o crasso erro inicial de se ter isentado o território do concelho da demarcação de zonas de Reserva Ecológica e de Reserva Agrícola.

Uma filtragem e as objeções previsíveis
Tal filtragem poderia assumir a forma de uma moratória sobre decisões que comprometem o futuro de terrenos que excedam uma determinada área, por exemplo 2500 metros quadrados (a ponderar). Essa paragem teria que ser curta, e a filtragem executada por exemplo por uma comissão composta por biólogos, paisagistas, climatologistas, ecólogos, geógrafos, economistas e juristas. Dois elementos de cada ramo e um presidente (o presidente do executivo municipal ou um seu representante, obviamente), constituiria nesta hipótese uma equipa  de 15 membros, suficientemente ampla para reunir o saber necessário à tarefa e suficientemente pequena para poder trabalhar a bom ritmo e não exceder o prazo atribuído. Condição essencial seria que os seus componentes estivessem isentos de conflitos de interesse. Ou seja, que não tivessem ligações a empresas de construção, gabinetes de arquitetura e de engenharia civil, fundos imobiliários, e similares. Tal seria garantido por uma declaração escrita de cada membro e por um período público de escrutínio, por exemplo um mês, por parte da assembleia municipal e da opinião pública, da imprensa escrita e audiovisual.

Podem levantar-se facilmente objeções a esta moratória: de índole jurídica, relacionada com os conhecidos «direitos adquiridos» e «expetativas de mercado»; de índole social, as necessidades habitacionais previsíveis, a relacionar também com a política de reabilitação do centro consolidado da cidade; de índole económica, como as restrições que tal implicaria, sobretudo no setor imobiliário. Abordaremos essas objeções num próximo e último artigo (6) sobre a salvaguarda dos direitos das gerações futuras a solos livres e aptos ao desempenho de funções ecológicas que são vitais. (7)   [Agradeço a Daniela Pinto Pugh algumas observações oportunas a que procurei responder no corpo do texto ou em nota.]

Gelos de Portugal. Foto Paulo Talhadas dos Santos. Com os nossos agradecimentos.

(1) Sendo em Portugal a energia elétrica produzida em grande parte sob forma de energia hídrica (barragens), estamos perante um quebra-cabeças ecológico, pois não basta que a fonte energética seja renovável para que se possa considerar «verde». No futuro não muito longínquo, os veículos individuais elétricos de utilização generalizada continuarão a constituir um problema. Manter o grau atual da produção e utilização do carro particular será indesejável mesmo quando já não circularem veículos movidos a combustíveis fósseis e mesmo não fósseis, já que os biocombustíveis são ainda mais nocivos ambiental e socialmente (terras utilizadas para produção desses combustíveis em vez de para a agricultura).

(2) Tal reestruturação implicaria a substituição das espécies arbóreas pirófitas (muito vulneráveis ao fogo) por espécies folhosas autóctones, sobretudo carvalhos e sobreiros, e nunca a desarborização ou desmatamento. Seria ainda necessário intercalar zonas arborizadas e zonas agricultadas como travão aos incêndios mesmo com espécies não pirófitas devido à situação decorrente das alterações climáticas. Além de que é desejável contrabalançar o abandono agrícola intenso verificado desde os anos 1950 com alguma recuperação da agricultura sem com isso regressar às proporções de meados do século XX.

(3) No que concerne o pavimento de vias de circulação, é já possível utilizar materiais com razoável grau de permeabilidade. Ao substituir empedrados para facilitar a circulação automóvel e mesmo ciclável, deveria ser obrigatório utilizar esses materias de betão ou asfalto permeável enquanto se não concebe outro tipo de pavimentos com menor impacto ambiental que o cimento e os derivados do petróleo. Quanto às vias já pavimentadas com asfalto impermeável deveriam ser gradualmente substituídas por esses novos materiais. Resta que o principal fator de impermeabilização do solo urbano permanece o «betão» no sentido de construção de edifícios de todo o tipo. Com a generalização das técnicas modernas de construção, que incluem cada vez mais frequentemente vários pisos abaixo do nível do solo, a interferência com o ciclo hidrológico natural tornou-se ainda mais violenta e dificilmente reversível.

(4) Os solos vivos na cidade são destruídos sobretudo pela construção de edifícios. Quanto a solos aráveis eles estão sujeitos a formas de erosão e outros fenómenos de degeneração que um programa da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) procura reverter até 2030, quando se deverá ter atingido uma situação de neutralidade, ou seja, de paragem da degeneração dos solos. Portugal está comprometido com esse programa.

(5) Ver Reflectir o Porto e a região metropolitana do Porto, edição Campo Aberto, 2006, p. 84, ponto 5.12

(6) Além do livro já indicado: «Onde cabem na cidade as desejadas hortas e jardins? – ou de como corrigir um erro histórico».

(7)  Ao que ficou dito sobre poluição do ar, acrescentem-se algumas outras fontes existentes: pequenas fábricas e oficinas com funcionamento ainda à base de combustíveis fósseis; compostos voláteis provenientes de ETAR; fontes externas ao concelho como a central a gás de Gaia, a GALP em Matosinhos, compostos voláteis provenientes de aterros nos concelhos vizinhos, e semelhantes.

 

Gelos de Portugal. Foto Paulo Talhadas dos Santos. Com os nossos agradecimentos.

 

23  Que Cidade Queremos
Colocado em 07-12-2020

UMA MORATÓRIA PARA AS GERAÇÕES FUTURAS
— DIREITO A RECUPERAR OS ECOSSISTEMAS DA CIDADE
José Carlos Costa Marques

[Embora se inspire do trabalho feito ao longo de vinte anos pela Campo Aberto,
este artigo não é uma posição oficial da associação, mas sim,
como o são todos os publicados nesta rubrica Tribuna Aberta,
uma posição do respetivo autor.]

 

Uma política eficaz trabalha no limite
entre o sonho e a realidade
Kevin Lynch, A theory of good city form

[Sobre as imagens, mais uma vez os nossos agradecimentos
a Paulo Talhadas dos Santos, amigo, cientista, fotógrafo e cidadão exemplar.
São escolhidas do tema Grandes Rugas da Terra, na sua galeria,
onde esceveu este comentário: junto delas, temos consciência da nossa dimensão.
Acrescento: na Grécia arcaica e clássica,
a isso chamar-se-ia consciência dos perigos da Húbris,
o orgulho sem medida, que, ao contrário,
carateriza a nossa época e a empurra ao precipício.]

 

A nossa proposta de reverter o erro, praticado nos anos 1980-1990, que foi isentar o concelho-cidade do Porto da demarcação de zonas de Reserva Ecológica e Reserva Agrícola, reversão essa precedida de uma moratória que permitisse identificar os melhores solos a estabelecer como livres de urbanização, decerto se deparará com algumas objeções previsíveis, que analisaremos brevemente mais adiante.

Antes, porém, diremos que a associação Campo Aberto contribuiu já com vários documentos para a filtragem que sugerimos, os quais não podem — ou não devem — ser ignorados (1). Daí que remeta para esses documentos uma melhor compreensão dos pressupostos da proposta.

É evidente, nos casos em que tais terrenos já tinham sido destinados para urbanizações no PDM de 2006, que essa reversão será tudo menos fácil — embora não seja impossível. Novos casos poderão surgir de comprometimento de terrenos (para construção) por meio do novo PDM a ultimar pela CMP nas próximas semanas, que deveriam antes ser preservados. É o que parece depreender-se do teor da proposta apresentada pela CMP em discussão pública, se, apesar do que tal discussão trouxe ao de cima em sentido contrário, o novo PDM vier a atribuir possibilidade construtiva a solos que a não possuíam anteriormente. Embora, no primeiro caso, reverter a situação nunca pudesse ser tarefa fácil, no segundo, a confirmar-se, a dificuldade será ampliada, colocando novas dificuldades à geração presente. Mas sobretudo comprometerá gravemente os direitos das próximas gerações a poderem decidir um futuro melhor para esses solos, e mais de acordo com as necessidades atuais que decorrem do agravamento constante da situação ambiental (alterações climáticas mas também redução drástica da biodiversidade, inquinamento generalizado das fontes da vida, ar, água, solos). E agora sem desculpa: a CMP conhece as propostas feitas pela Campo Aberto em 2009 (Campanha 50 espaços verdes a salvaguardar) e o contributo de 2020 para o PDM de 2021.

Direitos de propriedade, direitos adquiridos
e expetativas de mercado
A proposta de uma moratória não poderá ignorar evidentemente os direitos dos atuais proprietários desses solos. Nos casos em que possa haver direitos ditos «adquiridos», haverá que proceder a uma análise jurídica da solidez e do fundamento dessa atribuição. Seja como for, haverá situações que só terão solução através de aquisições pelo município ou indemnização por expropriação.

O erro foi possível, antes de mais, devido a uma legislação nacional que o possibilitou. Por isso as soluções teriam que ser encontradas conjuntamente com o Estado central, recorrendo aos mecanismos financeiros habituais e/ou ao recurso a instituições bancárias internas e externas.

Considerar esse como um preço incomportável deriva dos dois pesos e duas medidas com que se encaram, por um lado os direitos de propriedade (e direitos derivados, como os direitos ditos adquiridos), por outro lado os direitos ditos difusos por não ser claro quem são os indivíduos  abrangidos, já que são direitos de coletividades inteiras. Neste último caso estaríamos perante os direitos do artigo 66.º da Constituição da República Portuguesa atribuídos a todos os cidadãos e portanto também aos residentes no concelho do Porto. É facto que o nosso sistema jurídico e os tribunais estão ainda pouco atentos a esses direitos coletivos, e tendem a privilegiar os direitos em que os titulares têm um nome preciso e individual (ou são sociedades anónimas…). Mas surgem já sinais de alguma incipiente atenção, como nas declarações de uma recente ex-Procuradora Geral da República sobre as prioridades a estabelecer no próximo futuro no que concerne o funcionamento jurídico do país, quando sublinhou precisamente os direitos difusos, incluindo os direitos ao ambiente e qualidade de vida (que constam do referido artigo 66.º).

«Uma parte ampla das sociedades modernas tem consciência clara de que já não é tolerável o domínio irrestrito de direitos de alguns que possam coartar o direito de todos os outros à justiça e à dignidade», e o direito a um ambiente de vida humano e sadio e ecologicamente equilibrado (n.º 1 do artigo 66.º). «Com o eclodir generalizado da consciência ecológica e ambiental, basicamente na década de 1965-1975, surgiram os direitos ambientais. O direito a um ambiente saudável e equilibrado foi sendo reconhecido e progressivamente integrado na ordem jurídica, quer no interior das nações quer na esfera internacional. Em Portugal, tal está bem patente na Constituição da II República, desde 1976 [com as limitações já assinaladas]. Apesar disso, as consequências desse reconhecimento estão ainda longe de terem sido plenamente assimiladas na legislação setorial e na prática política, judicial e administrativa corrente. — O maior reconhecimento dos direitos ambientais, que está ocorrendo e deverá e poderá ser ampliado na próxima década, será, se ainda vier a tempo, uma alavanca decisiva para a salvaguarda do que ainda resta de valor ecológico e paisagístico no nosso território, e obviamente também na região metropolitana do Porto» (2) e no próprio concelho. Mas, dentro de décadas, se forem entretanto urbanizados todos ou boa parte dos solos a que o novo PDM atribui essa capacidade, na formulação apresentada à discussão pública, pouco restará. Seria agora a oportunidade. Talvez a CMP a tenha perdido. Mas os portuenses podem ainda muito fazer para evitar que eventuais novos erros venham a ter concretização.

 

Foto Paulo Talhadas dos Santos. Com os nossos agradecimentos (Everest, Himalaias, Nepal).

 

Os limites da cidade e a expansão urbana
Algumas cidades da Europa começaram a preparar-se para enfrentar os inevitáveis limites de uma expansão indefinida, logo desde meados do século XX. Para poderem realizar uma expansão equilibrada, tomaram providências tendo em conta o papel das cinturas periurbanas e dos terrenos agrícolas que em parte as circundavam. Segundo Maurizio Marcelloni (1938-2011) (3), que foi professor do Instituto de Arquitetura de Veneza, Itália, a via que se mostrou mais eficaz para que os municípios pudessem manter a possibilidade de  regularem o seu próprio crescimento, baseava-se numa política de aquisição preventiva de imóveis (superfícies e edifícios) e da sua manutenção permanente como propriedade pública, nomeadamente municipal, sendo a expropriação secundariamente utilizada apenas como instrumento de eventual pressão.  Essa, além de ser a prática mais antiga para o fim em vista, revelou-se também a única capaz de alcançar efeitos reais, como o comprovava, segundo esse autor, a experiência da Holanda e da Suécia. Nos anos 1990, em ambos esses países, e noutros ainda, confirmaram-se experiências semelhantes, agora já não centradas na questão da expansão urbana, mas mais amplamente na questão da sustentabilidade urbana, inclusive como preparação e como eco da Cimeira da Terra (1992, Rio de Janeiro) (4).

A questão que pomos quanto ao Porto insere-se mais neste último enquadramento. Até porque o Porto tem o seu limite de expansão claramente definido em relação aos concelhos vizinhos, expansão que se volta, pela força das coisas, não para fora mas para dentro (de outro ângulo de análise, haveria que ver como, demograficamente, o Porto se tem projetado precisamente para esses concelhos).

Questões de custos
A aquisição preventiva já não pode ser aplicada para reparar o erro de ter sido ignorada tanto Reserva Ecológica como Reserva Agrícola. A  «generosidade» do anterior PDM e a que poderá ser a do próximo na atribuição da faculdade construtiva a alguns dos melhores (do ponto de vista agrícola e ecológico) e mais extensos solos da cidade parece ter tornado inevitável, para reverter o erro, o recurso à aquisição reparativa ou mesmo à expropriação com indemnização. O que, no atual quadro de sobrevalorização das «expetativas de mercado» (que faz delas uma espécie de lei oculta perante a qual se curvam os poderes), faz subir significativamente a parada. No entanto, os custos previsíveis, certamente elevados, servem de pretexto a que se ignorem outros custos, por um lado aqueles, impossíveis de quantificar monetariamente, mas muito reais, provenientes da degradação da qualidade ambiental e ecológica da cidade, e, por outro lado, outros, estes quantificáveis, resultantes da forma como se não hesita em recorrer no país, com custos enormes, a expropriações cuja utilidade pode ser em não poucos casos questionada com razão.

As indemnizações por expropriação foram objeto em Portugal, talvez há cerca de 30 anos, de uma revalorização que em parte era justa, em relação aos padrões «por tuta e meia» usados anteriormente pelo Estado. O pêndulo parece ter-se deslocado para o extremo oposto, dificultando soluções desse tipo onde seriam úteis, ou mesmo necessárias, para a eficaz proteção do património natural. Isso não tem impedido que se recorra largamente à expropriação «por interesse público» em casos exatamente opostos, onde o suposto interesse público encobre operações de destruição ou mutilação de lugares e territórios de inegável interesse natural, e não raro até supostamente protegidos por lei. Chegou a hora de utilizar esse instrumento, embora comedidamente, para a salvaguarda e não para a destruição desses valores.

Seria no mínimo recomendável que o município definisse urgentemente um limite, a não exceder, de solos sujeitos a impermeabilização, salvaguardando assim outros solos, capazes de suportarem um coberto vegetal diversificado — limite esse a detalhar inclusive ao nível da freguesia, ou de zonas da cidade consideradas à luz de algum outro critério apropriado.

 

Foto Paulo Talhadas dos Santos. Com os nossos agradecimentos (Grand Canyon, EUA)

 

Necessidades habitacionais
Outra objeção que se poderá invocar é que uma moratória como a que propusemos iria prejudicar a satisfação das necessidades habitacionais dos residentes.

Como primeira nota a este respeito, refira-se que, mais cedo ou mais tarde, se não for travada a «expansão para dentro» a que assistimos no Porto, os limites físicos, geográficos, imporão a sua lei, a não ser que se faça do Porto uma Xangai ou uma Hong-Kong (mesmo que em miniatura). Muito antes de lá chegarmos, essa ideia insana, e que nunca ninguém propôs, terá sido travada esponteanamente por obstáculos antropológicos, espaciais ou técnicos, deixando ruínas atrás de si.

Em segundo lugar, se há uma «expansão para  dentro» em termos de construção, existe também — desde há décadas, e acelerada precisamente pelos preços incomportáveis da habitação na cidade devidos à ausência de boas políticas sociais, ambientais e até económicas — uma «expansão para fora» em termos de fluxos de população. Isso explica igualmente por que razão os concelhos do chamado Grande Porto (Matosinhos, Maia, Valongo, Gondomar, Gaia) vêm acentuando o seu caráter de «subúrbios-dormitório», o que os torna cada vez mais centripetamente dependentes do Porto, agravando a perda de enraizamento local. O tema, complexo, deixo-o para outro escrito, sobre o trajeto que nos tem vindo a levar da cidade que liberta ao gigantismo urbano que oprime.

Em terceiro lugar, e apesar da distorção introduzida por esse processo centrípeto-centrífugo (movimento pendular dia-noite), Portugal passa, como a generalidade dos países europeus, por um processo de estabilização populacional, sentido claramente no Porto. Assim, em termos da sua população permanente, as necessidades habitacionais tenderão também a estabilizar. Quanto à população não permanente, guardamos para outro escrito uma tentativa de explicação mais pormenorizada.

Numa quarta nota, a especificar nesse hipotético novo escrito, caberia referir a deturpação a que foi sujeita a ideia muito justa e oportuna de reabitar a Baixa do Porto. Ideia essa que se pode e deve ampliar a várias outras zonas, como a Alta da Baixa (Marquês, Constituição, Batalha, Bonfim), parte das Antas, Paranhos, parte de Ramalde, e Cedofeita. A esperança de trazer de novo gente (e gente nova) a morar no centro histórico foi asfixiada no ovo pela mesma razão que levou muitos jovens e jovens casais nascidos na cidade a «suburbanizarem-se» (e a acentuar a suburbanização dos subúrbios!): os preços elevados da habitação resultantes desta vez da «reabilitação» na Baixa. O que por sua vez resultou de uma ideia de reabilitação do centro, orientada não para a satisfação de necessidades das camadas médias e ativas da população, incluindo as de poder de compra moderado, mas para camadas de poder aquisitivo elevado. Não admira que acabasse por atrair, não a população residente, mas a população flutuante, temporária e de segunda ou terceira residência. Ou seja, sobreveio a habitação antes de mais como negócio e só remotamente como satisfação de necessidades sociais prioritárias.

A reorientação da habitação do centro da cidade no seu sentido mais amplo poderá responder à necessidade de alojamento de muitas famílias e pessoas individuais antes que a moratória que propomos possa ser chamada à pedra como obstáculo a qualquer política habitacional séria.

 

Foto Paulo Talhadas dos Santos. Com os nossos agradecimentos. (Islândia, Grande Dorsal Atlântica).

 

Prejuízos do setor imobiliário e da construção
Um ex-presidente da Câmara Municipal (que, é justo dizê-lo, seja qual for a opinião que dele se possa ter noutros domínios, foi o primeiro a sentir a necessidade para o Porto de alguma contenção construtiva) respondia, aos que o criticavam por limitações hipotéticas do dinamismo do setor imobiliário na cidade, que o problema de que esse setor sofria era outro: o excesso de capacidade instalada.

Do setor poderíamos dizer o mesmo que dissemos da questão da habitação. Um setor de construção habitacional sólido, saudável, equilibrado, socialmente útil, sem excesso de capacidade instalada… não só é compatível  como pode conviver bem com a realidade que é a existência necessária, mais cedo ou mais tarde, de um limite à «expansão para dentro» que assinalámos.

A ideia de «gold rush» resulta sempre no abandono da «mina» e em deixar para trás ruínas de pedra e ruínas humanas. A miragem pode ser atraente: quando o vento sopra a favor, parece que a corrida ao ouro pode durar sempre. Os próprios — e foram poucos — que sentiram o caráter insustentável da corrida não imaginavam que os factos viessem tão cedo dar-lhes razão — e por motivos aparentemente alheios à política de solos. Mas um insignificante micróbio — numa sociedade triunfalmente orgulhosa do seu progresso, inclusive no setor da medicina, onde de facto se fazem prodígios — bastou para impor, no mínimo, uma pausa à constante fuga para a frente da avidez e do negócio. Os estragos e a ruína são já imensos. E, como sempre, sofrem mais os mais pobres. É bem possível que esta pausa seja ultrapassada. Mas o gestalt ou padrão da «corrida ao ouro» não deixará de trazer recorrentemente os mesmos efeitos, por essa ou por outras causas. O «gold rush» é o exato oposto de uma economia sustentável (que, vejam-se os grandes nomes como Adam Smith ou John Stuar Mill, remonta em germe aos clássicos) — numa época em que, depois de ter sido ignorada, não só a palavra como a realidade, se fala de sustentabilidade a propósito de tudo e sem propósito.

 

(1) Ver o livro Reflectir o Porto e a região metropolitana do Porto, editado em 2006; o livro Espaços Verdes e Vivos, um futuro para a Área Metropolitana do Porto, editado em 2017; o espaço digital Espaços Vivos e, mais recentes, as  Propostas para as cidades que queremos

(2) Ver Espaços Verdes (nota 1), pp. 33-34, para as frases entre aspas nesse parágrafo. 

(3) «Le politiche per la lotta alla rendita fondiaria in Europa» in La Città sostenibili, Marina Alberti, Gianluca Solera e Vula Tsetsi, edição Franco Angeli, Milão, 1994, pp. 90-95.

(4) Ver La Città sostenibili (nota 3), pp. 199-237.

 

Foto Paulo Talhadas dos Santos. Com os nossos agradecimentos. (Grand Canyon, EUA).

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3 Comentários

  1. Manuel Barros

    Não podia estar mais de acordo.
    Nos meus 72 anos, pronto para colaborar.
    Nota: Já colaboro numa coisa muito importante, as minhas deslocações no Porto ( e arredores são de bicicleta)

    Responder
  2. Eduardo Ferreira

    Na minha ignorância, a questão da “necessária urbanização” do espaço Porto, não é mais do que o resultado duma enorme gula construtiva, e que foi acentuada, pela necessidade de alojar o turista, numa “urbe” que propicie o “enjaulamento” do Homo Sapiens que trabalha de sol a sol, que não tem tempo, nem estimulo, nem recursos financeiros, para ir morar em zona mais “saudável”. Bem vista a coisa, o numero de edificações devolutas e degradadas e em completa ruina na cidade, daria para acomodar muitos residentes e ainda sobraria muito edifício para alojar turistas. Só que essa reconversão do edificado é cara e causa muito transtorno no imediato à vida na urbe.
    Enquanto o poder não se conseguir distanciar do lobi da construção e as receitas das autarquias dependerem sobremaneira da urbanização desenfreada, por via dos licenciamentos, projectos, pareceres, autorizações e venda de solos de valor inflacionado, num completo e continuo desrespeito pelo futuro de pessoas. Assim o PDM irá sofrer mutilações e manipulações sucessivas com o fim de acomodar os interesses dominantes. Não há “ar” “água” ou “solo” que resistam ao movimento de capitais, que tragam mais valias sem tributações. Resta-nos ir tentando contrariar/minimizar essa realidade.

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