ESQUIZOFRENIA CLIMÁTICA? PALAVRAS DE AÇÃO E AÇÕES SEM PALAVRA?
Observando as belas palavras das conferências internacionais sobre o clima e as tendências reais dos países que subscrevem os tratados nelas elaborados, somos levados a pensar que o mundo padece de esquizofrenia climática, negando na realidade as belas palavras dos acordos internacionais.
A esse respeito a Campo Aberto emite o seguinte comunicado, no qual se analisam as perspetivas abertas (ou fechadas) por mais uma dessas conferências, a Conferência das Partes 22, que decorre em Marraquexe, em Marrocos, até sábado 19 de novembro.
Comunicado Campo Aberto
PODE MARRAQUEXE IR ALÉM DE PARIS?
Está a decorrer em Marraquexe a Vigésima-segunda Conferência das Partes sobre Mudança Climática (COP 22). Realizada um ano depois da COP 21, que foi celebrada logo no seu encerramento como uma conjugação de vontades que terá vindo salvar a Humanidade, os especialistas dizem ser esta uma conferência intermédia, que verifica, acompanha e visa garantir a aplicação do Acordo de Paris.
Nesta ocasião, os ecologistas e a generalidade dos cidadãos inquietos perguntam: pode a atual situação acomodar-se a conferências de menor relevância neste domínio, porventura dedicadas à simples gestão do que foi acordado? Está efetivamente consolidado aquilo que foi alcançado pelo Acordo de Paris? E contém este acordo o necessário para fazermos as mudanças – numa escala e numa urgência nunca antes tentados pela humanidade – que impedirão que a vida humana no planeta seja aterradora, se não simplesmente impossível, a muito breve prazo? As respostas, ou sobretudo a falta delas, indiciam a verdade da situação.
A situação global, seja no plano ambiental, seja no político e social, é profundamente inquietante. Os acontecimentos internacionais mais recentes vieram torna-la cristalina, desmentindo o, porventura bem-intencionado, comunicado de Patricia Espinosa, a responsável do Clima nas Nações Unidas, que afirmou ser esta uma conferência que decorre enquanto «todos os países do mundo estão empenhados numa ação global decisiva contra as alterações climáticas». Estão mesmo todos empenhados? Vejamos: o maior produtor e consumidor mundial de hidrocarbonetos, assim como segundo maior emissor de CO2, acaba de eleger – para todas as suas instâncias governativas – responsáveis que manifestam inequivocamente a sua rejeição destas preocupações, reiterando simultaneamente o seu projeto de reinvestimento maciço nas práticas mais agressivas para o clima e para o ambiente em geral. A ratificação do Acordo por parte do Presidente Obama era já extremamente frágil, uma vez que o poder legislativo se lhe opunha. Agora, essa ratificação é mais ilusória do que nunca. Poderão ou quererão os outros países ficar indiferentes a essas tendências que parecem vir repor um industrialismo hoje impossível e arcaico? Sendo notório que as políticas para o ambiente pressupõem necessariamente que o planeta não pode já ter fronteiras nas questões essenciais, e quase tudo está hoje nessa posição, a palavra «fronteira» voltou a ser uma palavra-chave da política contemporânea. À medida que ela reaparece e se volta a enraizar nas consciências, mais as políticas climáticas são impossíveis de concretizar, sobretudo porque essas fronteiras são também as inimigas das comunidades e das economias locais.
PARIS: UM ERRO DE CÁLCULO?
É certamente importante existir um acordo global sobre as mudanças climáticas. Mas sinais inquietantes previnem-nos de que talvez este acordo esteja a ser entendido, na realidade, como uma permissão para poluir dentro de um quadro de pequenas medidas na área da chamada economia verde, que pouco altera o esquema dos grandes interesses, permitindo abandonar inquietações incómodas e porventura opostas aos negócios usuais. Ora, o que não é de todo usual é a evolução do comportamento do clima. Como disse em setembro passado o Professor Jason Box, um dos membros das equipas que monitorizam constantemente a Gronelândia, «a mudança climática abrupta está a caminho (…): os glaciares estão a mover-se mais rapidamente do que a política». Os mecanismos de realimentação e autorreforço desencadeados pelo aquecimento global associam esse fenómeno a outros efeitos, como a libertação de metano, imensamente mais indutor de efeito de estufa do que o próprio CO2 libertado na atmosfera. Quando julgávamos que a comunidade internacional também começara a mover-se, percebemos que os compromissos climáticos atuais nos conduzem antes aos 3ºC, ou mais, acima dos níveis do período da Revolução Industrial, o dobro do 1,5ºC adiantado pelo Acordo de Paris.
A Conferência de Marraquexe decorre no preciso momento em que a indústria petrolífera, incluindo em Portugal, se expande globalmente, a uma escala nunca vista, graças a novas tecnologias e a processos cada vez mais invasivos. A deflorestação continua a progredir apesar de existir, supostamente, uma consciência global sobre o desastre que ela representa. A indústria automóvel parece viver de novo belos dias de expansão; a aviação civil emite CO2 como nunca na história; o comércio mundial alcançou uma escala da circulação dos produtos, incluindo dos nossos alimentos, que é ambientalmente e energeticamente absurda. Como pode a COP 22 ser relevante se não for capaz de enfrentar diretamente estes aspetos? Marraquexe só fará sentido se, para além de levar Paris a sério, for muito mais ambiciosa e souber ler as tendências que são já visíveis para todos. Para tal, poderia começar por colocar a revisão crítica do modelo industrial, da alimentação humana e dos hábitos de consumo, sem esquecer a anulação urgente de todos os projetos atuais de extração de combustíveis fósseis, na balança das medidas verdadeiramente urgentes. Sem essa agenda, Marraquexe será mais uma etapa no falhanço histórico de um acordo sem potência política, ética ou simplesmente humana.
Campo Aberto, Porto, 17 de novembro de 2016
QUE PENSAR DO ACORDO DE PARIS?
Energia e Clima é uma rubrica sobre a questão das alterações climáticas e energéticas, de grande incidência ambiental, que irá oportunamente remeter para vários artigos já existentes neste e-sítio sobre esses temas. Hoje damos relevo a um artigo de Jorge Leandro Rosa, membro da direção da Campo Aberto sobre o recente acordo de Paris. Não sendo uma posição oficial da Campo Aberto (onde haverá matizes mais otimistas e mais pessimistas), exprime no entanto preocupações e perspetivas que nos são comuns. Convidam-se os leitores a enviarem os seus contributos e perspetivas para: contacto@campoaberto.pt
Esta imagem acima, bem como as três que constam do final do artigo abaixo, são de
Coração Aliado – Visual Productions, JGF_1492 – Jacobo G F, 4072 –
Rita Pinto, MARAMB_077 – Lara Jacinto, e paparazzi – paparazzi foto report.
As restantes, incluindo a imagem de destaque na página inicial do e-sítio, são de Cláudio Anes.
É possível um pessimismo esclarecido?
É que o acordo de Paris, para já, apenas protegeu os interesses envolvidos
Jorge Leandro Rosa
Alguém acredita verdadeiramente que este acordo é «um forte sinal dado aos mercados e à indústria»? Foi isso que disse um dos vários partidos que invoca vocação ecológica no nosso país. Vemos alguns dos que se dizem «ecologistas» ou ambientalistas reproduzir a eufórica agenda diplomática da França. É que nada disso foi conseguido nesta COP (Conferência das Partes).
É certo que a referência ao objectivo de 1,5ºC está lá, ela é justa e era um encargo mínimo, concordo. Só é pena que seja de índole publicitária, dada a total ausência de medidas concretas, sobretudo aquelas que atingiriam directamente a indústria petrolífera, a extracção de carvão, as indústrias automóvel e da aviação, etc.
QUEM VAI AFINAL CORTAR EMISSÕES CARBÓNICAS, QUANTO E QUANDO?
Essa referência, que não vincula ninguém, mas é simpática e favorece os signatários no retrato da época, não está acompanhada pelas referências, que seriam absolutamente necessárias, a cortes quantificados das emissões carbónicas.
E muito menos aparece qualquer referência ao extractivismo acelerado em que as indústrias e os Estados parecem apostados. Muitos do que falam hoje de ambiente e de mudança climática gostam de falar a linguagem institucional, porque parecem considerar que temos cinquenta ou cem anos para reformar estas instituições por dentro. Claramente, não temos. E não avançaremos se o princípio de uma dívida ecológica não for claramente suportado.
Quem leu o documento final desta COP sabe que todas as medidas voluntárias admitidas continuam a apontar para um aumento de temperatura global que pode chegar aos 3,7ºC no final do século, se não mais, já que a dimensão exponencial dos fenómenos não é levada em linha de conta. Contam os subscritores que mais medidas voluntárias venham a ser acrescentadas a estas, é certo. Mas nenhum cenário nesse voluntarismo permite pensar que tais medidas hipotéticas poderão vir a compensar o voluntarismo já manifestado euforicamente pela indústria petrolífera em aproveitar as oportunidades que a mudança climática oferece na exploração dos recursos do Árctico (cf. BARNETT, «Analysis Paper» do CSIS, 11-11-2014).
Por outro lado, as emissões continuarão a aumentar em 7% ao ano até, pelo menos 2030. A indústria dos combustíveis fósseis e a indústria agro-pecuária conseguiram passar incólumes por esta Cimeira, talvez o verdadeiro feito aqui obtido por alguma das partes interessadas.
CAVALO DE TROIA A NEUTRALIDADE
Por outro lado ainda, o conceito de «neutralidade» é o cavalo de Tróia da indústria. A própria China chegou a dizer que não compreendia o conceito. Alguém a deve ter informado para vir a ter, como parece que teve, a sua anuência. Permitiu abandonar as referências mais desassombradas ao abandono do uso de combustíveis fósseis, que eram uma das últimas esperanças para este acordo. Aqui, propõe-se a autorização do uso dos fósseis em troca de florestação (qual?), de técnicas de sequestro do carbono (quais e onde estão elas?) e do velho comércio de emissões. A brincadeira é tão cínica que este acordo, que só entrará em vigor em 2020, só poderá ter a sua primeira revisão no ano de 2025. Como estamos perante um processo exponencial, todos percebem que o «business as usual» comanda aqui o uso do tempo e das ilusões.
Saberão os eco-eufóricos quantas vezes as palavras-chave da situação climática estão inscritas no texto final deste acordo? Saberão os expertos políticos da mudança climática (já que os cientistas sabem-no bem) quantas vezes o seu optimismo moderado é verificável neste texto? Vejamos: «petróleo» tem zero ocorrências; «carvão»: zero; «fóssil»: zero; «transportes»: zero; «comércio»: zero; «agricultura»: zero. O optimismo moderado, em certos casos a euforia, de certas associações e partidos vale politicamente zero. Muitos parecem querer demonstrar que o seu «pilar da ecologia» é tão publicitário quanto o «carácter histórico» deste acordo.
Jorge Leandro Rosa, 13-12-2015
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