ENERGIA E CLIMA 2018
A Campo Aberto tem entre as suas linhas de trabalho permanentes o tema Energia e Clima (encontra neste e-sítio vários textos e informações se pesquisar essas duas palavras em conjunto). Em 2018, este artigo de Jorge Leandro Rosa liga entre si urgências ambientais em Portugal, como a seca, o aquecimento global, a desertificação e outras disrupções que atingem, nas palavras do autor, «o meio, a vida vegetal e animal, a vida humana no fim de contas» (subtítulos da coordenação deste e-sítio).
Colocado em 2 de março de 2018
O AMBIENTE E O TOM ERRADO DO PÚBLICO
JORGE LEANDRO ROSA*
Numa só edição (26-2-2018), o jornal Público dedicou agora um vasto espaço editorial a diversos aspectos do rápido descalabro do ambiente entre nós, com particular relevo para a seca no território português. É suficientemente raro para que não o assinalemos, embora seja necessário dizer que esse grau de atenção está longe de ser o necessário – na verdade, nem consistente ele chega a ser – diante do profundo impacto que as situações reportadas terão nas vidas da generalidade dos cidadãos a muito breve trecho. Se o comunismo foi o espectro que vagueava pelo mundo no século XIX, agora é o ambiente que parece vir inquietar as boas consciências: não se sabe bem ao que corresponde mas começa a assustar. Se uma revolução agora eclodisse no país, não veríamos as páginas de qualquer jornal subvertidas elas próprias pela urgência dos acontecimentos? Embora nenhuma agitação semelhante se esteja a verificar na comunicação social, podemos fundamentadamente afirmar que a degradação ambiental adquiriu uma tal força disruptiva que a sua representação só poderá emergir quando profundamente modificados os hábitos dos media, forçando-os abandonar os lugares-comuns da sua linguagem. Já não é apenas o ecossistema x ou y que é atingido: quase todos os sistemas naturais e todas as estruturas humanas neles fundadas correm o risco iminente de colapsos que se repercutem entre si, atingindo o meio, a vida vegetal e animal, a vida humana no fim de contas.
Sinais contraditórios dessas escolhas editoriais emanam deste número de O Público: sete páginas são dedicadas à seca extrema em que se encontra a maior parte do território português; seis reportagens percorreram, de Trás-os-Montes ao Algarve, um país que está já manifestamente mergulhado no aquecimento global (designação que foi sendo substituída pelas mais imprecisas «alterações climáticas»), embora a questão só seja evocada numa única e discreta passagem. Quiseram ver de lés-a-lés, mas viram o quê? Descontextualizadas da mudança climática antropogénica, estas reportagens caem no registo da consternação, perdendo de vista a resiliência, que deveria ser o seu horizonte fundamental. Como se pode ir ver hoje estes fenómenos sem ideia do que se move neles, do que se faz aí interdependência imparável, uma corrida que é também a nossa corrida, a estafeta das nossas metas civilizacionais?
DO REGADIO INTENSIVO À SECA GENERALIZADA
O título da primeira reportagem – dedicada ao regadio intensivo – é, desde logo, elucidativo do que reflecte o jornalismo do Público: «Exportadores temem falta de água». Estamos certos de que ninguém é mais afectado, em termos de prejuízo financeiro imediato, pela seca. Mas será esse o prejuízo mais relevante? O texto da jornalista espraia-se pelas variações e angústias do défice «das trocas comerciais de produtos alimentares e bebidas». Como aí se diz a certa altura, será caso para estar atento «à problemática da seca e ao impacto na cadeia de valor agro-alimentar». E não seria caso para estarmos também atentos à cadeia alimentar, tout court? É que não cremos que possa haver «cadeia de valor» sem o valor inerente da cadeia alimentar.
Outra reportagem, mudança de cenário (estamos em Trás-os-Montes) e mudança de tom, ou seja, mudança de registo do discurso. Diz agora o agricultor, que fala da tonalidade que predomina nesta altura do ano nos campos, «o tom está errado, está tudo errado». Aqui há uma angústia surda: «Com a desertificação natural da nossa região, este é quase um fim anunciado […] É sempre este céu azulão». A verdade destas palavras reflecte a verdade da terra, que não engana quem a conhece. Logo depois, outra deslocação, em direcção à planície alentejana: «No montado das azinheiras, as folhas estão encarquilhadas, sinal de que precisam de água. Os efeitos da carência hídrica não são imediatos: dentro de dois ou três anos aparecem as viroses e as doenças que matam as árvores». Sim, a falta de água não representa apenas o falhanço das culturas de certos anos, mas anuncia um problema ainda mais grave, que tenderá a instalar-se permanentemente no território português: as alterações climáticas provocam a deslocação ou a extinção das espécies vegetais e animais, já que o aumento das temperaturas médias faz declinar a sua saúde e a sua resistência a doenças e pragas que acompanham o calor. E as barragens – remédio milagroso que nos propuseram ao longo do século XX – poderão criar oásis? Quase todos pedem mais barragens nas seis reportagens do Público, mas um outro agricultor é certeiro, ao comparar o Alqueva à região de Beja: «É um condomínio de luxo ao lado de um bairro de lata». Só nos restam as metáforas urbanas para nos fazermos compreender no nosso desespero agrário? Os condomínios são, por definição, fechados, mas na natureza (e na sociedade) todo o fechamento tem um preço elevado.
PERIGOS AMBIENTAIS SILENCIADOS
E qual é o preço deste jornalismo, porventura bem intencionado, mas incapaz de reflectir a onda avassaladora que nós próprios criámos? Quem lê este melancólico exercício disseminado pelo país, encontra múltiplas facetas de um processo natural. Mas o que vê do input humano nele? Perante o desastre ambiental, o Público escolheu o seu campo e o seu ponto de vista é, de dia para dia, mais claro. Há semanas, este jornal publicou, com grande publicidade, a versão portuguesa do livro-panfleto de Klaus Schwab, o Presidente do Fórum Económico Mundial: A Quarta Revolução Industrial.
Trata-se de um manifesto mal disfarçado do transumanismo, o totalitarismo tecnológico de rosto sorridente: nele não há ameaças ambientais nem perigos provocados pelo esmagamento da natureza pelas três primeiras revoluções industriais. Há apenas disrupções virtuosas que os novos heróis, os «líderes empresariais e os executivos seniores» deverão domar a seu favor. As novas tecnologias trazem a disrupção e o seu remédio. A «adopção de uma árvore através das redes sociais» é a sua proposta híbrida mais «ecológica». Virá o dia, sonham os Schwab deste mundo, em que as cidades digitais só terão árvores digitais. Diante deste programa, começamos a perceber melhor o quase silêncio do Público diante dos efeitos das alterações climáticas: a engenharia genética, a geoengenharia e toda uma panóplia de «tecnologias inteligentes» virão desenvolver espécies adaptadas, incluindo certos humanos aumentados, que herdarão o que restar da Terra devastada. É um programa que não se apresenta como político, mas do qual muitos meios de comunicação fazem a sua política quotidiana.
O Público quer ver tudo o que se passa. Consegue mesmo ver, numa outra peça do mesmo dia, algumas páginas adiante, que o país não conseguirá pagar em 2050 a taxa carbónica que lhe está consignada pelo Acordo de Paris. Por isso, o melhor será só descarbonizar 60% e não 85%. E provavelmente chegarão à conclusão, mais adiante, que 40% já está bem. É verdade, o Público está a ver bem: o abandono das energias fósseis não garante o crescimento. Não diz é que o crescimento não é já um cenário para gente preocupada com a curva da vida, que está na sua linha descendente. Vê apenas o cenário dos que preferem as cadeias de valor e a elas adaptam as suas projeções. Não vê que os seres vivos não sobreviverão a tanto valor acrescentado sustentado na natureza. Mas não diz Schwab – o guru do jornal – que a robótica será uma das chaves da quarta revolução?
*Professor e investigador universitário, membro da direção da Campo Aberto
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