Opinião # 16 – Nostalgia na Avenida dos Aliados

por | Out 31, 2005 | sem categoria | 3 Comentários

por Beatriz Pacheco Pereira (crónica publicada n’ O Primeiro de Janeiro e aqui transcrita integralmente com autorização da autora)

«Ontem fui ao café Guarany em plena avenida dos Aliados, ali mesmo no meio, entre a parte em obras e o que ainda resta da antiga sala de visitas do Porto.
Fui lá por duas razões. A primeira, a apresentação do programa de animação lançado pelo Fantasporto para a Baixa da cidade, a outra, à noite, a apresentação do livro de Danyel Guerra sobre um poeta nascido no Porto no século XVIII chamado Thomaz António Gonzaga. Das largas horas que lá passei saiu este texto, talvez o mais triste que alguma vez escrevi sobre o Porto.

Animar a Baixa do Porto- e os cartazes da Câmara andaram por aí, e muito bem – é um imperativo.
Do que me tenho apercebido, em inúmeras conversas com cidadãos e nem todos anónimos, toda a gente concorda que temos uma cidade lindíssima e subaproveitada em todos os ramos da sua actividade.
Para mim, que já tenho una anos de vida, não posso dizer que as coisas já foram melhores. Não foram. Mas os últimos tempos mudaram tanto o mundo e a vida das cidades que há que ser cada vez mais activos na transformação. E, porque não se pode perder dinheiro – as cidades representam gigantescas oportunidades comerciais – há que pensar bem e executar melhor.
Assim, e de acordo com essas conversas, surgiu a necessidade premente de, com uma política de habitação, claro, se proceder urgentemente à concertação dos agentes económicos da cidade com os agentes culturais. Porquê? Concertar o quê?
Imaginemos a situação dos restaurantes da baixa. Num dia a abarrotar porque há espectáculos no Coliseu, no Rivoli, no Sá da Bandeira, no Teatro S. João. Há pessoas que não conseguem entrar porque já está tudo cheio e, em vez de uma boa refeição de comida portuguesa, que há optimos restaurantes na zona, vão comer uma sande ao café para não chegarem tarde aos espectáculo. Não há, assim o usufruto dos espaços, tudo resolvido a correr. Não se deixa dinheiro, não se cria emprego, continuando um equilíbrio instável que não permite a renovação dos espaços, a modernização dos equipamentos.
Há soluções simples para isto, e sem custos de maior. Uma é a coordenação da programação das casas de espectáculos à noite. Outra a incentivação dos agentes culturais da cidade de modo a conseguirem produzir espectáculos diários que encham a Baixa de interesse a qualquer hora.
Já repararam que não há no Porto companhia nenhuma, de teatro, bailado, folclore incluído, ou produtores da área da música que tenha condições (sede, estabilidade financeira e vontade de trabalhar) que consiga produzir um espectáculo diariamente?
Que não há música portuguesa nos nossos restaurantes, bares, ruas? Que quase tudo o que passa pelo Porto é importado e vai-se embora depois de espectáculos únicos, e muito pouco dinheiro fica nas mãos dos portuenses?
Que nem os turistas, que passam os dias em viagem standardizada pela cidade e arredores – um tour em autocarro descapotável, uma ida às caves e pouco mais, tudo por conta de agentes de viagens, estrangeiros na maioria – não têm nada que fazer à noite? Ir, talvez, à Ribeira ou ao Cais de Gaia, uns copos, uns souvenirs comprados em lojas (raríssimas) de artesanato mal apresentado, e o regresso ao hotal. Dois, três dias, e saem.
O dinheiro que podia ter cá ficado, não fica. O turista que vem em “pacote” não regressa depois, sozinho.
Os mais endinheirados não existem por cá. Onde está o turista americano, japonês, coreano, sueco, norueguês, árabe?
Espectáculos, nem vê-los. Encarneirados, os turistas deixam-nos sabendo que o país tem grandes contrastes e pouco mais. Sem saber o que é a nossa música, a tradicional e a mais moderna- que não passa nas rádios, nem é sequer, habitualmente, música de fundo de elevador ou supermercado.
Os turistas e outros visitantes desconhecem os nossos criadores, que vivem neste momento a mais funda e mais escondida das crises, sem perspectivas de reanimação da sua actividade, seja teatral, literária ou nas artes plásticas – que cá deixam-se cair os talentos como se deixou cair, durante décadas as nossas casas.

Fica-lhes apenas na memória a “granitização” da cidade, a desarrumação, os graffittis, alguns monumentos e paisagens espectaculares como em nenhuma outra cidade do mundo. Muito carácter mas também muito caos. Nem leva consigo um guia do pouco que poderia ter visto- porque guia completo, não há.
E como os habitantes da cidade também não “consomem” da Baixa em toda a sua potencialidade, o estado das coisas prolonga-se.
Mas há soluções. Um exemplo. Imagine-se a Praça dos Poveiros sem os inúmeros estranhos cidadãos que lá consomem os seus tempos livres até caírem de bêbedos, imaginem, pois, com os seus espaços comerciais todos ocupados com restaurantes de charme (pouco espaço, muita qualidade de comida), com esplanadas de apoio com aquecedores em tempo fresco, gente a tocar música clássica e popular mas portuguesa, muita luz e verdura. Haveria ainda lojinhas de artesanato e antiguidades, algo para passear os olhos antes do jantar e do espectáculo. Tudo na mesma zona. Aliar isto a alta qualidade de serviço e equipamentos e tinhamos um centro de actividade excelente de apoio aos espaços culturais da zona.
Assim é no centro de Paris, em Berlim, em Londres, em Varsóvia – e esta cidade foi totalmente destruída na 2ª Guerra Mundial, agora reconstruída com rigor na traça original, cheia de tipicismo e vida no seu centro urbano.

E agora, a Avenida dos Aliados. E a tristeza.
Estava na soleira do Guarany e lembrei-me de uns estrangeiros que lá levei e me expressaram a sua admiração por termos sabido conservar este café na traça original. Senti-me bem. O Guarany está modernizado mas não perdeu personalidade. Olhei então para a placa ajardinada central em frente, a que ainda está intacta, e vi a estátua dourada de uns meninos com uma cesta de flores à cabeça, bem iluminada, rodeada de um fantástico canteiro de plantas verdes e avermelhadas, com bancos de jardim tradicionais à volta, um primor de romantismo e calma. A emoldurar tudo, o pavimento artístico, em desenhos impecáveis executados há muito.
Tudo aquilo vai desaparecer em breve.
Senti-me a olhar um bilhete postal do passado, com a agravante de saber que ainda estou no presente. Que ainda posso ir fotografar aquilo durante uns dias, umas semanas. Que nada daquilo, da parte inferior da Avenida, foi abandonado pelos que dela habitualmente tratavam. O primor lá está, a exigência da qualidade de trabalho, a não recusa do passado em nome de uma modernidade duvidosa. Vi a harmonia das cores, do ambiente que se respirava naqueles metros, já poucos, e pensei que se devia conservar aquele espírito. Que salvassem ao menos, o espírito do local.
A modernização era imperiosa. Toda a gente sente isso. Mas a descaracterização não.
Aliás, no dia em que a nova praça, aquela que os responsáveis dizem vir aí, a que vai ser traçada por Siza Vieira, for apresentada aos portuenses, as pessoas conscientes da cidade vão aperceber-se da perda a que assistiram, na maioria sem nada fazer.
Eles vão aperceber-se da indignação que sentem mas que não expressaram na altura própria.
Vão sentir a perda do património cultural que representa a calçada portuguesa – as pedrinhas branca e pretas tão abundantes no Porto ainda há cinco anos atrás e que agora já não existem em lado nenhum. Repararam? As obras recentes “limparam-na” da cidade toda. E mesmo que se diga que veio de Lisboa, Lisboa não é solo nacional como o Porto?
Esses portuenses que não se expressaram na devida altura, nunca repararam na beleza dos canteiros da Avenida, nos desenhos artísticos que as plantas e as flores faziam, produto de jardineiros de altíssimo nível, do melhor do mundo, que tinham, decerto, orgulho do seu trabalho.
Essas pessoas, para não admitirem o seu falhanço e a sua responsabilidade na perda da identidade da cidade, irão elogiar o novo traçado, o pavimento de granito e até dirão que o calor que se vai fazer sentir na praça não é tanto assim.
Dirão também que a estátua de D. Pedro IV, que vai mudar de orientação, era uma medida necessária e muito acertada. E que não vai custar tanto assim.
Dirão igualmente, e veementemente, que Siza Vieira é o maior paisagista português. Bom arquitecto, muito bom até, tenho de reconhecer. Mas paisagista?
Muitos destes portuenses que vão aprovar o projecto previsto, são gente da política, os que aprovaram os projectos, outros os que nunca gostaram de História na escola. Os que não sabem o que faz viver as cidades, os que preferem Cancun a Londres.
Os outros, Dr Rui Rio, têm de ter a coragem de bater o pé (melhor, continuar a bater o pé) e dizer o que qualquer portuense decente e consciente dirá.
Que esta Avenida deveria ser respeitada nos seus aspectos artísticos actuais.

Que exige a frescura dos canteiros e os desenhos artísticos do seu chão tradicional. E, porque não, uma fonte. Pode ser a dos Leões que tão desenquadrada está agora no seu solo modernaço.

Dr Rui Rio, será a Avenida dos Aliados menos importante para a cidade que terminar o Túnel de Ceuta? Se fôr, importa perguntar: QUEM TEM MEDO DE SIZA VIEIRA?»

Crónicas anteriores de Beatriz Pacheco Pereira sobre a “requalificação” da Avenida e da Praça: Opinião # 6 – “Todos pela Avenida dos Aliados” ; Opinião # 15: Avenida dos Aliados- pobre de ti…
(arquivado em ALIADOS- OPINIÃO )

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3 Comentários

  1. Anonymous

    Penso que o blog comete um erro de base ao atribuír as culpas da situação da Avenida para o arquitecto. Não foi o arquitecto que se lembrou de esburacar a avenida e relativamente ao projecto, foi feito de acordo com a encomenda, nem outra coisa seria lógica.

    Eu penso que seria preferível haver um concurso de ideias e, eventualmente um referendo local (que a lei prevê). Mas a responsabilidade é do dono da obra. P. F. não responsabilizem o arquitecto por aquilo que não é da sua responsabilidade.

    José Manuel

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  2. manueladlramos

    Olhe que não, não atribuímos as culpas apenas ao arquitecto. Aliás o manifesto em defesa da Av. e da Pr. é endereçado em primeiro lugar ao Presidente da Câmara…. Recordando: «Vimos manifestar o nosso desacordo pelo modo como está a ser imposta à cidade do Porto, sem consulta pública, uma transformação radical do conjunto Avenida dos Aliados e Praça da Liberdade, e exprimir o nosso desgosto pela perda patrimonial e descaracterização da cidade que o projecto determina. Apelamos aos poderes públicos, e em particular ao Sr. Presidente da Câmara Municipal do Porto, e ainda ao Sr. Presidente da Comissão Executiva da Metro do Porto, S.A., assim como aos Arquitectos responsáveis pelo projecto de requalificação, para que este seja reconsiderado de modo a que se salvaguarde o património histórico insubstituível e o valor simbólico desta zona da cidade, nomeadamente no que respeita à preservação da calçada portuguesa, das zonas ajardinadas e das magnólias junto à Igreja dos Congregados.» ( Ler)
    Agora quando fala em “encomenda” , ou talvez melhor dizendo de “caderno de encargos”, se o houve ou não é algo que gostaríamos que viesse esclarecido no relatório final da Comissão Parlamentar da Educação, Ciência e Cultura. No entanto custa-me aceitar a desresponsabilização total dos arquitectos (assunto que abordado nos comentários desta entrada). Imagino erroneamente que tem capacidade e conhecimento para saber o que é melhor para determinado local. Não os vejo apenas como “paus-mandados”? Mas como disse uma pessoa conhecida “escolhem-se projectos , não se escolhem arquitectos” e ficamos a saber pela boca dos representantes do IPPAR nas audições da Comissão Parlamentar que este projecto Sizento (pelo menos para a Praça da Liberdade) data já da altura do Porto 2000, foi chumbado e agora recuperado, tendo “alastrado” pela Avenida acima! Por isso neste caso a responsabilidade é principalmente de quem o aceitou e achou que estava adequado, ou seja do Presidente da CÂmara e do IPPAR.

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  3. manueladlramos

    Só uma adenda…
    Quando me cruzei com RUI RIO em campanha aqui na zona onde vivo e me “atravessei” no seu caminho nao perdendo a oportunidade de lhe falar e dizer que tinha muita pena que ela NUNCA tivesse respondido aos nossos apelos e que no dia seguinte íamos entregar as assinaturas entretanto recolhidas (6200… agora já vão em mais de 7000) na CÂmara, sabe o que ele me respondeu? Ou melhor sabe o que ele me perguntou para além inquirir se eu tinha estado presente da Assembleia Municipal? Se já tinha falado com o ARQUITECTO?! Pode ver a “reportagem” aqui

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